“Ilhéu da casca até ao cerne”, descreveu-se Pedro da Silveira. E quanto ao feitio lixado, mesmo os admiradores e amigos não o escondem, e ele também não se desculpa. No seu “Soneto de Identidade”, explica como lhe está na natureza – o que é que se há-de fazer? –, e até no nome, pois “Pedro é pedra; picante agudo assomo/ de silva dos silvedos – não me dou!” E se lhe dava tão facilmente para se arreliar, se até agradece a destemperança de feitio – “os meus desdéns soberbos/ e sarcasmos ferozes” –, essa outra forma de errância, de exumar “lendas e sepultas verdades” não cai bem entre as repartições do ego. As meninas do guichet não carimbam, não se vai a lado nenhum. Mas no que toca à poesia, quem não se dá nem pede licença, e também não engole sapos, paga o preço que se sabe. E, contudo, a vingança na poesia é uma constante, e basta que resistam umas poucas páginas para acabar dando razão a esse que não negou à língua a maldade, essa que tanta justiça faz ao modo como a vida entre nós se arranja. De resto, o que podia esperar-se de um poeta que deve a nobreza das suas impressões a um feroz sentido crítico. Traindo este, seria natural que a musa se enfadasse. De resto, ninguém leva a mal se se disser o pior desde que a culpa se dilua entre todos, e todos, assim, se sintam ilibados. A tendência é até para concordar com os arrasadores diagnósticos gerais. No particular é que a coisa fia mais fino. Ora, sendo natural da Fajã Grande, uma freguesia rural da ilha das Flores, Pedro da Silveira sentiu a fundo essa espécie de agonia de sentir como “as horas vão, morosas como lesmas,/ rastejando por sobre o nosso tédio” (Roberto de Mesquita), em que, a ânsia de ver quebrar-se a monotonia, chega ao ponto de se desejar que haja um naufrágio, sem mortos, só para que o fio do tempo se tensione. Um espírito são não chega a implorar por uma tragédia, com mortos e assim, mas só a ignição para a mínima intriga, e é natural, por isso, que a modorra da vida numa ilha pequena entre a Europa e a América cultive esses espíritos chagados por não acontecer nada (“fora de nós, pelo menos”). É por dentro que tudo se contorce, e sem sinal de baleia lá fora, recria-se ou genial ou mesquinhamente alguma agitação. Isso justifica a imunda fauna do tédio que é tão comum em meios pequenos. Esses carácteres absurdos, terríveis, essas figuras insuportáveis de tontas, esse beatério com a sua insidiosa perseguição: “Todos os dias a pesar pecados/ na balança velha do céu”. Silveira, que cedo foi cirandando entre as ilhas, antes de, em 1951, ter ancorado em Lisboa, não chegou nunca a libertar- do sonho antigo de evadir-se, e tinha na carne as marcas dessa lenta dilaceração do que, de tanto esperar, nos torna íntimos da ausência. “Que vida monótona a vida da vila!…/ Sem cinema nem teatro/ nem luz eléctrica/ nem automóveis,/ nada do que dizem que têm as terras grandes…” As reticências abundam nestes poemas, e percebe-se como foge a desfazer-se nelas, a ceder àquele registo moribundo de quem escreve, não para a gaveta, mas para a garrafa que há-de ser entregue à maré, na esperança de que leve os versos mais longe do que merecem. Por outro lado, há um evidente apego à matéria, à exterioridade mais comum e que dá por quotidiano. “Não; não cultivo a poesia/ intemporal e profunda:/ a minha é quotidiana,/ imediata, o que abranjo/ vivo, visível, real;/ ou que, lembrado, me sobe/ pelos degraus da memória.” Mas se insiste nos “nomes próprios das coisas”, o poeta não se serve delas para se rebaixar comprazido. Não faz dos versos um bicho que no colo ronrona satisfeito nesse ir e vir da “cadeira-de-balanço/ como tantas que há/ nas terras pequenas das ilhas pequenas/ guardando sonhos e desenganos/ de várias gerações…” De resto, não é difícil encontrar traços em comum com Raul Brandão, esse que a propósito da ilha das Flores, escreveu: “A vida não me interessa. Algumas florentinas esbeltas, de xale escuro pela cabeça, alguns tipos de homens fortes – e mais nada. De ilha a ilha – Corvo e Flores – vão quinze milhas – mas que distância as separa!… (…) Compreendo o Corvo, não compreendo os interesses mesquinhos, moídos e remoídos numa pequena vila isolada a cem léguas do mundo. Vejo às janelas, por dentro das vidraças, fisionomias tristes de velhos que estão desde que se conhecem à espera de quem passa – e não passa ninguém. É aqui que o hábito deita raízes de ferro. Oh, meu Deus! descubro que a gente enterrada há cinquenta anos se encontra outra vez nas Flores, viva e aferrada às mesmas palavras e às mesmas manias do passado, numa meia-sombra em que se cria bolor. Estou talvez no Purgatório – o Inferno é mais ao norte… Certos seres mortos na minha mocidade, e que eu não sabia onde se tinham metido, foram desterrados para as Flores. Até personagens de romance! (…) Visitei uma senhora de idade que nunca saiu de casa e até a paisagem da ilha desconhece. Quem não trabalha só pode fazer uma coisa: sentar-se nos bancos de pedra da Misericórdia e esperar a morte. E na verdade aqui tanto faz estar vivo como morto e sepultado num jazigo de família.”
Curiosamente, Silveira termina o poema “Outra vez no Corvo” com a mesma impressão: “Ermo com gente:/ vivos e mortos confundidos.” Mas é no poema “Toada dos Jornais Velhos” que melhor nos explica os constrangimentos de estar isolado do mundo, dando-nos, assim, o mais tocante retrato do intelectual no exílio, esse que não se resigna e, ao invés de sentir a distância como um empecilho, faz-se valer dela para recriar na sua cela as notícias que lhe chegam desse mais vasto teatro: “Maços de jornais já velhos/ de Lisboa e mais d’América,/ do Faial e da Terceira:/ têm dez dias, quinze, trinta/ as novas que me eles contam: novas de nada de novo/ para mim de novidade desses mundos lá de fora:/ sempre-vivas flores secas/ para mim como de quando.// Abro-os, ordeno-os por datas,/ e leio-os de ponta a ponta,/ releio-os, torno-os a ler,/ já de cor tudo lhes sei/ e o que foi, quanto me dizem/ não foi outrora, é agora,/ nem longe, nos longes que/ longes são a mais de longe:/ tão perto como se aqui/ nesta sala em onde os leio.” O poeta fala do que é ter trinta dias para contar entre cada remessa, trinta dias de intervalo até que chegue novo maço de jornais, então já velhos, mas: “Que me importa já ter sido?/ Que me importa quando foi?/ Ausente, vivo em presença;/ participo, mesmo ausente.”
Pedro da Silveira morreu em Lisboa, em 2003, aos 80 anos. Não parecia acreditar ou deixar-se seduzir pela ideia de posteridade (“Sempre soube que devemos morrer/ e penso que é melhor/ não se saber quando nem como./ E quanto ao que deixámos,/ não se recorde de quem foi./ Que só assim somos eternos.”). Além do mais, sempre se mostrou insatisfeito com os poucos livros que chegou a editar. Publicou quatro livros – A Ilha e o Mundo (1953), Sinais de Oeste (1962), Corografias (1985) e Poemas Ausentes (1999) –, além do primeiro volume do que teria sido a reedição integral desta obra poética – “Fui ao mar buscar laranjas” (1999). Raramente, um ou outro lá surge como destroço de alguma biblioteca que perdeu o seu leitor, mas nem estão devidamente valorizados, e vendem-se a um preço igual ao de tantos livros da “maioria dos mesmos da vida literária portuguesa, tão satisfeitos de si mesmos que escrevem sempre um livro pior do que o anterior” (Jorge de Sena). Para que se diga que Pedro da Silveira é, hoje, um poeta esquecido, era preciso que alguma vez tivesse sido outra coisa que não um poeta absurdamente desvalorizado. A boa notícia é que o Instituto Açoriano de Cultura inaugurou uma colecção de poesia, sob a direcção do poeta e crítico Carlos Bessa, com a reunião da obra de Silveira. Urbano Bettencourt preparou esta edição de pouco mais de 400 páginas e que, no essencial, retoma o projecto de reedição. Trata-se de um desses acontecimentos editoriais de primeira grandeza e que, se são ignorados, isso deve-se simplesmente ao facto de, neste país, do ponto de vista cultural, não restar um número suficiente de intelectuais e críticos minimamente responsáveis, e capazes de, numa ou noutra circunstância, fazer coro exaltando o que quer que seja.
Não sendo possível nem desejável falar para toda essa terra onde a poesia vem triunfando como outra forma de populismo, em que, na falta de um destino mais alto, considerar-se poeta é uma forma de orgulho, uma “obstinação maníaca do ressentimento”, pelo menos, ainda vai sendo possível “dizer um segredo a um só ouvido”. E assim, como se se tratasse de uma indecência absoluta, diga-se que Pedro da Silveira é um grandessíssimo poeta. A coisa deve ser dita soando a uma divinal injúria, reforçando o quanto isso revela um alto grau de danação entre os homens. E o resgate de um poeta destes traria um sentido de regeneração quando da poesia querem fazer um último palco, uma espécie de tábua de salvação para a canalha. De tão íntegra, tão fiel aos seus conflitos, a voz que aqui nos fala das coisas como elas podem entender-se de forma clara, contadas com essa urgência da “curiosidade deslumbrada do mundo”.
“Poema feito de esperas e de longe,/ cheirando a sal”, mesmo se o poeta abandonou as nove ilhas e cada um dos seus lugares, a canção que não se cansa do mundo diz-lhe, como a epígrafe de Severo Sarduy a “Ossos na Areia” – caderno de inéditos que Silveira ainda deixou preparado –, no fim, “regressarás à tua terra, mas por outro caminho”. A ilha como que vaga com ele, o mar ainda o cerca de todos os lados, fazendo-se sentir, como esse silência que lhe pesa nos ombros e na cabeça: “E desce-me, como um líquido peganhento, ao longo do corpo. É um silêncio que se fixa, e ao mesmo tempo móvel – mas tão lento, tão lento!, dir-se-ia que vagarosamente engrossa, um corpo disforme de silêncio. (…) E no entanto, não sei porquê, não me mortifica: integra-me na paz vazia de estar vivo dentro desta morte azul e prata.”
É evidente o muito que a poesia tem a ganhar com esse talento para expandir coisas de nada, essa habituação dos sentidos ao ínfimo, a esses lugares da terra tão desertos de passos, em que, para fugir “de habitar a Morte”, habituando-se, o poeta vive em permanente estado de vigília, cultivando uma atenção salva-vidas. Assim, evita essa forma de desespero de quem toma o próprio pensamento por “uma inútil recordação de sobrevivente”. Inútil porque se está “num mundo-além-morte”. “No cimo do morro alto”. Silveira permanece “no pólo meridional deste Mundo-por-dentro, na sua Antártida-às-avessas.” A sua voz é uma longa, bela e triste história, contada e enriquecida ao longo de gerações, como “sangue de sombras que a memória avança”.
No prefácio a esta edição, Urbano Bettencourt assinala esta função da história que de si a si mesmo conta o poeta, como para não se deixar perder na corrente nem diluir naquela “paz de espelho velho”: “A evocação e a ordenação levadas a cabo pela memória serão, assim, um último exercício de auto-sobrevivência.” No desafio ao "íntimo oco" que formam o céu e o mar, o poeta dá-nos, mais que nomes, coordenadas, como a dessa "Praia do Fim", e dá-nos notícias das "sete barcas que o mar aqui tragou". São lugares que, ao longo dos séculos, quietamente, renovam o seu perigo, a sua virgindade alimentando-se de destroços, e que, assim, têm como um cadastro, onde estão inscritos os nomes de embarcações mais ou menos célebres a que deu um fim: "Da Nova Caledónia rumo a França,/ foi aqui que a Bidarte naufragou.// Pedregulhos, da carga, por lembrança,/ amarelos e verdes n'onde estou…/ – Lá fora, dela, mais o olhar alcança/ o ferro que um arrecife cativou." Assinando um dos nossos mais belos sonetos, Silveira está com Pessanha naquela caliginosa fluência, acrescentando algo mais ao seu assombro. Serviu-lhe bem a dura aprendizagem do ilhéu, fazendo da memória e do próprio eco um avanço: "Praia do Fim da Europa escura e baça/ onde ao redor só cresce a vil margaça,/ a perrejil, o cubre, a usaidela…// aqui – oh caos de rolos e salvados! –/nestes baixios negros desolados,/ desde Velasco e Teive a morte vela!"
Bettencourt recorda-nos ainda o leitor extraordinário que Silveira foi, desde o largo convívio que manteve com a literatura popular, o que se pressente na buliçosa entoação dos versos, nas suas modulações, como, a par dessa investigação, o diálogo que manteve com tantos nomes maiores da literatura, oferecendo-nos uma das mais exigentes e admiráveis antologias pessoais entre nós publicadas. No volume de traduções “Mesa de Amigos”, não há um poema a mais. Mas com a confiança que é natural num leitor que não precisava que outros lhe dissessem o que é a grande poesia, mesmo servida em prosa, na sua obra, Silveira recolhe sobressaltos maravilhosos que recebeu de outros, nessa indefinição de quem não distingue as vozes que se ouvem das que se lêem com maior fervor, e tal como nos diz que vasculhos de todas as raças lhe sifilizaram o sangue, também essa forma de memória cheia de futuro que é a poesia guarda laços de sangue improváveis com autores cujo rasto não se firmou entre nós. Há uma epígrafe fabulosa recolhida de um livro de versos do poeta brasileiro Afonso Félix de Sousa, em que além da “praia espessa do espanto”, que serve como uma das melhores noções desse retiro daquele que tira do mundo o bastante para se defender dele nas horas piores, nos diz que “força é acordares no estrangeiro que, pálido, acorda no teu íntimo.” Os envios de Silveira nunca são meramente decorativos, não funcionam como adereços ou enfeites. Nem muito menos são desses sinais de fumo entre os membros de uma dispersa tribo que se servem da erudição em elaborados cumprimentos que não querem, afinal, dizer nada de mais profundo. Como nota Steiner, citando o crítico francês Roger Caillois, “numa época cada vez mais incapaz de ler, quando até os espíritos instruídos não dispõem de conhecimentos clássicos ou teológicos mais do que rudimentares, a erudição torna-se em si própria um tipo de fantasia, uma construção surrealista”. Isto explica porque, ao lermos os poemas e os ensaios pejados da quinquilharia de certas referências que estão ali como “flores de plástico na montra de um talho”, a sensação que temos é que a nossa época não faz mais que produzir um longo cadáver esquisito, perfumando-o de erudição para disfarçar o fedor.
Pelo contrário, nesta poesia tudo participa de um moto-contínuo, e cada eco é consumido na invenção de um novo hálito. Há, de resto, aqui um ímpeto que faz, nalguns poemas, um aceno à épica. No segundo dos “Sete romances imperfeitos”, que Silveira dedica em recordação de alguns familiares e das experiências que foram decisivas para a construção do seu próprio mito biográfico, temos um corte com esse ânimo frio que, mesmo se fero, parece um tanto recatado, como se não houvesse margem na nossa lírica para algo mais aventuroso. Tomando balanço no desabrido registo de Blaise Cendrars, de quem traduziu vários poemas, o açoriano traça de si mesmo um estrondoso retrato: “Remotos sangues confluindo desde a Ásia à Europa no meu sangue./ Remotos, velhos, remoçados sangues/ do longe aos longes feitos./ – Mancha mongólica enigmática/ na minha pele de descendente,/ um pouco claro,/ de Gomes Dias Rodovalho/ e de Willem van der Haague… (…) babilónia de sangues/ noutros sangues inventando/ um novo sangue!/ Povos que se copulam, exterminam/ – e, sobre o amor e a morte, vivos! (…) Nómadas, oh força, sangue bruto, oh cruel/ e amorável sangue meu/ de esforçados! (…) Sangue indomado, indomável até onde/ é a razão indomável// – qual o vento do largo, cuja fúria desata/ as cadeias da água (…) Sangue de achar o retido no sono/ dos confins da água/ e dos cerros da terra! (…) Na minha voz as vozes/ amargosas de todos,/ sobre o lume do tempo/ e seus passos queimados!”