A Noite e o Tempo (In)certo – I


Para uns, que o dão, o oferecido pode ser a água suficiente dos brejos, para outros, que o recebem, pode saber a pouco, como se fosse a parca humidade da caatinga ou do cerrado do alto sertão da Bahia. Mas não é nem uma coisa nem outra, porque a verdade nunca está apenas de um…


A noite é sempre mais escura quando o sono não vem. E uma noite de insónia pode ser tão necrófaga quanto um urubu, mas com mais apetite e menos critério: não se limita a comer a carne ou a bicar os ossos da vida que já se foi, também se entretém – e com que afã, por vezes – a abrir as goelas e a mostrar, com hálito fétido, a suposição ou a inevitabilidade de novas finitudes. Uma noite de insónia pode bem ser uma cartomante cruel, que, ao mesmo tempo que baralha e deita na mesa as cartas da recordação ou da revelação do passado com as cores mais escuras, põe nos tons do futuro o traço de (novos) desencontros, incertezas, frustrações, derrotas, meios-termos.

Aliás, a noite é sempre escura e deforma a visão, mesmo quando deliberadamente insone: quando é para a festa, a libertação ou a celebração, deforma os traços da satisfação, mistifica a realidade ou hiperboliza as possibilidades; e quando o sono não chega, apaziguador, ensombra, enegrece, deforma os traços da tristeza ou do tédio. Mas, seja num caso seja noutro, deforma sempre para mais. Deve ser por isso que se diz que a noite deve ser para dormir, e para isso seria o tempo certo (pese embora alguma escuridão que o sono-sonho também pode trazer, mas esse é outro mundo). Mas nem sempre a noite serve para dormir, e há quem, forçadamente desperto, procure na noite a alegria (ou um simulacro dela) que não encontra sob a luz do dia, tal como há quem, visitado pela insónia (que nunca é doença, mas sempre sintoma, mais ou menos sério), veja tudo pelo lado negro.

E naquela noite sem sono, longa e afiada como são todas as noites assim, tudo lhe parecia escuro, retrospetivamente um trilho de desencontros, prospetivamente um caminho – bifurcado ou não – insaciado. Olhava para trás e parecia-lhe que todos os acontecimentos e encontros haviam sido antes de tempo ou já fora dele, quando os factos não estavam num tom afinado ou os pares não estavam num passo alinhado, e supunha que poderiam ter estado se tivesse sido antes ou depois (mas, nessa altura, ainda era cedo ou já era tarde). E, olhando para o lado, colocava-se agora a mesma questão, sentia a incerteza, doía-lhe a insatisfação. Uma e outra vez as palavras de Mário de Sá Carneiro, “um pouco mais”.

Por exemplo, um pouco mais de carinho, outro toque, diferente afago. O que há, não chega, porquê? Porque quem dá, dá de menos, ou porque quem recebe precisa ou espera de mais? Pelas duas coisas, seguramente, pois cada um é um, e o carinho é uma das suas muitas singularidades. Para uns, que o dão, o oferecido pode ser a água suficiente dos brejos, para outros, que o recebem, pode saber a pouco, como se fosse a parca humidade da caatinga ou do cerrado do alto sertão da Bahia. Mas não é nem uma coisa nem outra, porque a verdade nunca está apenas de um lado, e vistas de noite as coisas são ainda mais parciais e menos nítidas. É certo que a noite pode ser um tempo longo de muitas lições – e o que se sente, mesmo que deformado, é o que se sente (e nessa medida é a verdade, conquanto escurecida e provisória) –, mas ainda é mais certo, e maior lição, saber-se que há que ter paciência, há que esperar. Para começar, há que esperar pelo clarear do dia, sabendo que a noite pode enganar. Sabe-se lá o que virá e o que se verá pela manhã. (Continua.)

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira