“Cada filme é uma carta escrita por mil mãos”. Era esta a frase que acompanhava a exposição erguida em Serralves em torno do trabalho do cineasta Pedro Costa, patente há menos de um ano no museu do Porto. E serão também mil mãos que terão moldado o caminho de Vitalina Varela até chegar aqui e se fazer atriz no filme de Pedro Costa, que a ela e à sua história real vai buscar sustento. A autenticidade da narrativa começa agora a reluzir: o filme foi distinguido este fim de semana com o Leopardo de Ouro do Festival de Cinema de Locarno (Suíça), a distinção mais importante da competição.
Também Vitalina Varela recebeu o prémio Boccalino d’Oro, ou seja, o de melhor atriz – um prémio paralelo a Locarno, balizado por um júri independente.
Pedro Costa tornou-se assim no segundo realizador português a ser distinguido com um Leopardo de Ouro: o primeiro foi José Álvaro Morais, com O Bobo (1987).
Vitalina Varela teve a sua estreia mundial em Locarno de onde saiu atrelado de adjetivos que lhe gabam a arquitura da história, a fotografia, o elenco, a luz. Um dos críticos mais entusiastas terá sido, porventura, o da Hollywood Reporter que afirma que a história narrada por Pedro Costa é um “épico íntimo”, que se desvela num “estudo intrincado e silenciosamente comovente sobre a dor”.
O trabalho da protagonista e a sua força na tela foram igualmente aplaudidos. “Sofia Loren, Marlene Dietrich eram atrizes e divas. Vitalina Varela é atriz e mulher”, referiu o júri na entrega do prémio a Vitalina. O momento pode ser visto num vídeo divulgado pela produtora, a Optec Filmes.
“Fiquei muito feliz por vencer este prémio, e digo-o do fundo do meu coração. É um testemunho do amor com que filmámos”, retorquiu Vitalina.
Vitalina Os arquitetos do Leopardo de Ouro conheceram-se durante as gravações de Cavalo Dinheiro, que em Locarno também arrecadou o prémio de melhor realização, em 2014.
Esse filme, que traz também Vitalina, passa-se no bairro das Fontainhas, imediatamente após o 25 de Abril. Pedro Costa não deixou cair a história desta mulher cabo-verdiana de 55 anos e deu-lhe agora um filme sobre e para ela. Ela que chegou descalça, sem rumo, sem mãos que a guiassem à cacofonia do aeroporto de Lisboa, vinda das montanhas da ilha de Santiago, onde trabalhava a terra. Tentava reencontrar-se com o marido, Joaquim, que já tinha vindo procurar nova vida em Portugal. Eram da mesma aldeia, Figueira das Naus, e estavam separados há demasiado tempo: 25 anos, grande parte da vida dela.
Em 2013, quando conseguiu finalmente o bilhete de avião, Joaquim já tinha sido enterrado há três dias, resume a Optec Filmes em nota de imprensa. A partir daí, segue-se uma noite difícil – metafórica e literal, pelas escolhas de luz de Pedro Costa – de clarear.
Tudo é possível Os caminhos trilhados pela comunidade cabo-verdiana, personificada pela história de Vitalina Varela, aqui mulher, não atriz, são aqueles para os quais Pedro Costa quer chamar a atenção. “Não estou a fazer documentários de entrevistas televisivas. Estamos a tentar fazer algo um pouco mais épico”, disse o cineasta em declarações publicadas na página do festival suíço, acrescentando que quer que a comunidade “seja protegida pelo cinema”.
Pedro Costa falou ainda dos limites – aqui, claramente não existentes – do impossível, sublinhando que Vitalina Varela, feito a partir de uma “abordagem não-profissional”, conseguiu “um prémio num festival tão importante como Locarno”. “Significa que tudo é possível até para um velho com um pequeno filme feito sem dinheiro”. O financiamento foi, aliás, tripartido: veio do ICA, da Fundação Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Lisboa.
E acrescentou: “Para mim é uma grande honra e espero que possa abrir algumas portas para que o filme seja visto em mais partes do mundo”.
O desejo já se começou a concretizar. O filme estará no Festival de Cinema de Toronto, no Canadá, e será apresentado no 57.º Festival de Cinema de Nova Iorque. A longa – que conta ainda no elenco com Manuel Tavares Almeida, Francisco Brito, Imídio Monteiro e Marina Alves Domingues – vai também estrear para o ano nos EUA, onde já tem garantida a sua distribuição.