Leopoldo María Panero. A antologia como supremo gesto crítico

Leopoldo María Panero. A antologia como supremo gesto crítico


Cinco anos após a morte do “poeta maldito das letras espanholas”, um rigoroso esforço antológico da sua obra dá ao leitor português uma inebriante perspectiva de um autor muitíssimo desigual.


Bem antes de Herberto ameaçar a loucura acabando, depois, por seguir o caminho de uma lancinante lucidez, com um século de antecedência já Baudelaire espreitava essas zonas temíveis, e em 1860 escreveu algo de muito parecido com a frase que todos recordam de "Os Passos em Volta": “Eu, que no espírito e nos nervos sempre tive tudo o que era preciso para enlouquecer”. A soberania interior passa tantas vezes, e indevidamente, por loucura. Como disse Blake, se o louco persevera na sua loucura acaba no papel do sábio. Sem uma forte mitologia pessoal, nenhum criador está em condições de desafiar os exércitos dessa lei inalterável: o real. Com a densidade mesquinha do seu enredo, este logo demove aqueles que não estão capazes de pagar o preço mais alto, penhorar a alma, avançando de forma temerária, como um homem seguindo a trote na sua bebedeira pelo limite de um abismo.

Há um ponto em que a criação parece adquirir um ânimo, e quando o criador tenta ser prudente é ela quem lhe vem com falinhas mansas ou chantagens, arrastando-o. Leopoldo María Panero foi, desde muito cedo, um poeta dolorosamente consciente deste alto preço que se paga para alinhar os sentidos com essa frequência onde um sobre-humano texto vai registando a troca de confidências entre os espíritos que, por momentos, tocam a tensa corda do génio. O poeta espanhol nunca deixou de ser um sequioso aprendiz, e até nas conversas mais banais parecia tremer nesse estado de vigília constante, tentando encontrar uma aberta, e “conseguir dialogar, através do silêncio dos séculos, com alguns espíritos raros cujo cimo emerge só da sombra do passado e também só se vislumbra na sombra do futuro” (Élie Faure). Se às tantas, como notou o crítico Javier Rodríguez Marcos, Panero não escapou aos equívocos de “um poeta crucificado entre a sua própria desmesura e os tópicos do louco oficial da poesia espanhola”, já em 1984, no prefácio a El último hombre, ele convocava Blake, Nerval ou Poe para assinalar a linhagem do desregramento dos sentidos que permite voltar costas ao mundo, e alforriar-se. Citando Deleuze, lembrava que a substância da arte só nos cai nas mãos e se deixa moldar através de uma traição às leis da maralha, e que para isso o artista tem de “roçar a loucura, instalar-se nas suas margens, brincar com ela como se brinca e se faz arte com o touro”. Dar-se à morte, colocar-se “do outro lado da vida”, renascendo entre instintos apavorados, assim propunha “a literatura entendida como uma tourada: um ofício perigoso, deliciosamente perigoso”.

Não se trata de confundir génio e loucura, mas de se pôr ao alcance do desastre, esporear de tal modo o pensamento ao ponto de se correr o risco de este sair descontrolado. Mas na célebre entrevista ao El País com o título “eu posso ser um monstro, mas não estou louco”, Panero admitia que a loucura foi também um refúgio, e chegou a recusar-se a acreditar nela. Disse que os loucos eram uma gente que se viu de tal modo bestificada que optou por se esconder para não sofrer danos maiores. Afirmava que “os manicómios, os cárceres e os quartéis são lugares de privação da vida”, e na unidade psiquiátrica do Hospital Rey Juan Carlos I, em Las Palmas de Gran Canaria, para onde se mudou em 1997, “por razões climáticas”, e onde gozava da liberdade de sair diariamente, descreveu a sensação de ir para uma volta como se descer da cruz. “De noite, voltam a pregar-me a ela”.

Mariano de Santa Ana conta que era frequente vê-lo a fazer a sesta com o seu aspecto de mendigo nalgum banco da Rua Triana, ou enfiado nas livrarias da cidade, onde abordava os clientes para lhes recomendar os próprios livros. Mas o facto é que depois da casa dos pais, da tão conturbada relação com a mãe, a atriz e contista Felicidad Blanc, quando, aos 21 anos, após uma primeira tentativa de suicídio, lhe foi diagnosticada esquizofrenia, o seu amparo nas décadas que se seguiram foi a possibilidade de se entregar à tutela dos hospícios, faltando-lhe a paciência para lidar com os aspetos mais banais da existência e até com a burocracia de um corpo. Barafustava muito, entretinha todo o género de paranoias, dizia-se perseguido até pela CIA, mas preferia deixar por conta de outros o empenho em cercear o talento para a autodestruição – e até fazia gala disso, ecoando Mallarmé, que disse: “A destruição foi a minha Beatriz”. Filho de Leopoldo Panero (1909-1962), tido como o poeta “oficial” do franquismo, além de uma precoce e provocatória ligação ao Partido Comunista Espanhol, então ainda na clandestinidade, logo na adolescência caiu verticalmente no vício, e se superou a heroína, a vigilância a que se submeteu permitia-lhe recaídas esporádicas, e manteve a obsessão do álcool, que dizia ser a alpista dos passarinhos, esses entre os quais vivia: doentes mentais, pobres criaturas apagadas em que certamente se inspirou ao escrever o verso “todos os homens são monumentos da minha ruína”.

De resto, esses lugares onde nos vemos privados da vida podem servir ao poeta como um elemento disciplinador. Enquanto se queixava da sua condição, subentendia-se como o inferno lhe podia ser útil: “Escrever é tudo o que se pode fazer num manicómio. Aqui dás-te conta de que Kafka é um escritor realista”… Andar cá fora, na miserável guerra que ritma o quotidiano, tantas vezes apenas nos conduz a uma forma de cumplicidade com esse mal-estar que tudo penetra e deforma, com a baixeza das estratégias comuns, inoculados contra os heroísmos inúteis que nos restam, e toda esta escola para a traição cada vez se parece mais com “essa vida de que falam/ no Inferno, os mortos entre si, os alucinados, os absurdos,/ os orgulhosos sonâmbulos disputando com sangue/ uma certeza alucinante”.

Depois de ter traduzido para a Alma Azul, em 2003, o livro Poemas do Manicómio de Mondragón, nesse mesmo ano, Jorge Melícias viu publicada no Brasil uma antologia da obra de Leopoldo María Panero, através da editora Lumme, e em grande medida é esse trabalho que, cinco anos após a morte do poeta (em março de 2014, aos 65 anos), chega ao leitor português com selo da Antígona. A razão por que este A Canção do Croupier do Mississípi e Outros Poemas é uma recolha a todos os títulos admirável é por resgatar o poeta aos seus excessos, levantar o ouro que ficou do longo e profundo rastro que desenhou este “pastor do excremento”. Mais do que a tradução, onde se percebe um rigorosíssimo apuro da parte de Melícias é na seleção dos poemas, sendo Panero alguém que “pela forçada e contínua sobre-excitação cerebral a que se tinha condenado”, tantas vezes, como notou o seu companheiro de juventude Luis Antonio de Villena, se repetia ao ponto de isso doer na carne do leitor, que “sente a luta entre Jacob e o anjo no seu íntimo”. Villena adianta que, nos anos da juventude de ambos, quando se conheceram, ele era um lúcido desequilibrado que buscava o malditismo e a repulsa, sob o signo de Artaud.

Não podendo estar seguro da persuasão dos seus versos, Panero também parece ter confiado que chegaria o tempo de os seus leitores resgatarem os sinais mais exaltantes de alguém que assumiu o risco de um batedor, que trabalhou febrilmente e até ao limite, ao ponto de se ferir na própria dúvida. Se a contradição é um terreno fértil, se nunca foi de fazer figas, se não acreditava na besta da inspiração mas cultivava o espanto como uma ciência, também deu por si “assombrado pelo [seu] próprio silêncio”. E, num dos poemas deste livro, a dúvida vai tão longe que Panero regista: “Hoje as aranhas fazem-me calorosos sinais desde/ os cantos do meu quarto, e a luz titubeia,/ e começo a duvidar que seja verdade/ a imensa tragédia/ da literatura”.

Se “o louco erra mas não mente, e tem a perniciosa mania de dizer a verdade”, e se há uma veemência invulgar no poeta que se viu “convertido em apóstolo de uma desolação com o seu culto”, Panero nunca se preocupou muito com os leitores, e enfrentou um juízo severo da parte dos seus pares, sendo acusado de trabalhar mais para a lenda do que para fazer estalar um verdadeiro conflito no campo literário. Recolhendo “poemas de nove livros, cobrindo, parcialmente, quinze anos de produção poética do autor (1979-1994), período por muitos considerado como o de maior relevância artística”, esta antologia poupa-nos aos desaires de um poeta que, segundo Melícias, trabalhava as palavras “como escombros que resultam da incapacidade de construir um sentido”.

Se o tradutor exalta nesta poesia a “perseguição de uma vulgaridade fracturante, onde toda a aparente trivialidade resulta sempre transcendente”, lendo a reunião da obra de Panero, na Vísor, muitas vezes caímos como água morta pelo buraco da página, com a sensação de estarmos a ler uma atabalhoada pesquisa de um insaciável salteador de sepulturas. Túa Blesa, responsável pela reunião da obra, e o autor que publicou o mais esclarecido ensaio sobre ela, diz-nos que se trata de “uma poesia sem território, desterritorializada, pelo que o seu traço é o de uma errância pelos contornos da literatura e da linguagem, para encontrar os pontos de apoio a partir dos quais se intenta reiniciar a aventura da escrita”. E adianta que, sob este ponto de vista, a obra de Panero é uma escrita da leitura onde, a cada passo, se inserem citações, literárias ou não, quando não é todo um poema que resulta da reelaboração da página de um outro”. De resto, como lembra Melícias, no prefácio de um dos seus livros, Panero afirmou: “Toda a literatura não é senão uma imensa prova de tipografia e nós, os escritores últimos ou póstumos, somos apenas correctores de provas”.

É refrescante ver um poeta munir-se da “teoria lautreamontiana do plágio” num tempo em que, de volta à noite reaccionária da poesia, nos damos conta de que são sempre os mais inanes que pregam as explorações sem mapa, sem o aturdimento das referências que ameaçam transformar os seus leitores em meros epígonos, como se a originalidade não fosse a miragem dos ignorantes, esses que a exaltam como a virgindade que os permite entregarem-se de branco no altar da poesia. Por outro lado, sem a mediação de um antologiador que livre Panero dos tantos percalços, versos que não parecem mais que “espasmos de um neurótico obsessivo”, sente-se que ele pretende extenuar a memória nessa longuíssima-metragem que vive de rezar à morte dos outros, avançando entre as contas de um infinito rosário, o “diário de um homem infinitamente envenenado”.

Num dos últimos textos que publicou em vida, o poeta assumiu, aliás, esse “terror do instante em que já nada reste para escrever, e uma mão sai do túmulo e aponta o caminho”. Por outro lado, a sua obra parece vibrar animada de forças que lhe vêm do submundo. É como se Panero tivesse invertido o esquema, reclamando a morte para nascer a partir dela. Eis um ser recriado em cada página, em que a carne, os próprios ossos se organizam segundo uma linha genética imaginária, alguém que recombina a sua ascendência. E a força destes framentos  tão instáveis, de todo este catálogo de imprecações, litania de pragas, opera nos sentidos do leitor como uma lepra cantante. Notas falhadas, aleijões sonoros que ainda assim persistem até criar vislumbres de uma harmonia capaz de denunciar a beleza como uma operação plástica. “Vejo com o olho da mosca”, diz Panero. E num poema tardio que não integra esta recolha, tem este apontamento fenomenal: “Como um cão ladro-me a mim próprio/ e escarvo nos restos da minha alma/ como alguém que quis ser/ e se converteu/ em vapor de si próprio, em seda/ rasgada pelos lebréus do tempo.”

O risco que torna este um ofício verdadeiramente perigoso é estar sempre na iminência de fazer da página um naufrágio em que os escombros se limitam a flutuar por ali sem sentido. O poema arrisca não ser mais que esse “buraco/ na página/ por onde a realidade/ cai como água morta”. Por outro lado, a reserva ou mesmo frieza com que a obra e máscara de Panero foram recebidos ao longo dos anos foi aclarada pela reacção do poeta Carlos Marzal à sua morte: “Ainda que tenha morrido hoje, tenho a impressão de que Leopoldo María Panero fazia de cadáver há muitos anos. Desde a infância. Era o nosso morto oficial, o profeta de uma Igreja, a do malditismo, que necessita de um sumo sacerdote sobre a terra. Tenho a impressão de que aos seus fiéis interessava mais a lenda hagiográfica de Panero do que os seus evangelhos: mais as suas macaqueações e disparates do que os seus livros; mais a sua deterioração – que interpretavam como uma mostra inequívoca de genialidade – que os próprios poemas.” E concluía numa incisiva denúncia: “A certos espectadores, tão preocupados com a sua própria saúde, encanta-os que alguns artistas desbaratem a sua.”

Actuando como um exemplar exercício de crítica, esta antologia de Melícias é um sólido argumento a favor da táctica de Panero, a qual, segundo o seu mestre, o poeta Pere Gimferrer, nos obriga a encarar a “destruição e desagregação da consciência adulta” como o preço que pagou pelo “triunfo da adolescência”. Antecipando a sua morte, este poeta encarnou essa forma de petulância desgostosa de quem encena no teatro da sua intimidade o desastre da modernidade, essa desfiguração frente a tudo o que resiste ao tempo (“Só há duas coisas: o meu rosto desfigurado/ e a dureza da pedra.”). Restou-lhe, assim, essa orfandade diabólica, a de alguém que nos seduz marcando a hora da sua morte, para depois se mostrar tudo menos pontual. Este poeta que nos surge ferindo a língua contra os dentes, com o sangue em riso e que, como disse Winston Manrique Sabogal, vomitava poesia, deixa-nos os seus versos como “oferenda para as moscas”. Mas esta sua vingança tem uma particularidade: não é fria. Não é um acto odioso mas apaixonado, quase afectivo como deixa claro em “Dedicatória”: “Para além de onde/ ainda se esconde a vida, resta/ um reino, resta cultivar/ como um rei a sua agonia,/ fazer florescer como um reino/ a suja flor da agonia:/ eu que tudo prostituí, ainda posso/ prostituir a minha morte e fazer/ do meu cadáver o último poema.”