“Enquanto ignorarem a psiquiatria, não pode deixar de haver sem-abrigo”

“Enquanto ignorarem a psiquiatria, não pode deixar de haver sem-abrigo”


A autarquia da capital quer tirar os sem-abrigo da rua até 2021. Ao i, o psiquiatra António Bento – que acompanha o fenómeno há décadas –, identifica os obstáculos que o objetivo enfrenta.


A Câmara Municipal de Lisboa (CML) aprovou o Plano Municipal Para a Pessoa em situação de Sem-Abrigo (PMSA) para o triénio 2019-2021 com um objetivo ousado: tirar todos os sem-abrigo das ruas da cidade até 2021. A ideia foi expressa pelo vereador dos Direitos Sociais, Manuel Grilo, durante a reunião pública da autarquia: “a minha visão é retirar todas as 361 pessoas da rua no decorrer deste plano”, afirmou.

Atualmente, de acordo com os dados mais recentes, relativos ao final de 2018, vivem na capital 2473 pessoas sem-abrigo – dessas, 361 vivem na rua e 1967 residem em centros de acolhimento.

Mas será a previsão de tirar, até 2021, essas 361 pessoas da rua, realista? O psiquiatra António Bento, diretor do Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – Hospital Júlio de Matos e que há mais de 30 anos acompanha o fenómeno das pessoas sem-abrigo em Portugal, é cauteloso. “A resposta não pode ser sim ou não. A Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2017-2023 (ENIPSSA) e a Europa têm uma posição que é que ninguém esteja na rua mais de 48 horas por falta de respostas. Mas enquanto ignorarem a psiquiatria, não pode deixar de haver sem-abrigo na rua”, afirma ao i.

O fenómeno dos sem-abrigo nada tem de simples: uns, aceitam sair da rua e ir para centros de acolhimento, mas muitos não. Desses, se nem todos sofriam já de doença mental antes de acabarem na rua, muitos acabam por desenvolver problemas. Em casos mais graves, como assinala António Bento, há quem se esqueça mesmo do próprio nome. E isso torna o processo da sua retirada da rua muito complexo. Em fevereiro, o i noticiou o caso de um sem-abrigo que não sabia o nome e que, mesmo assim, acabou por ser levado pelas autoridades e internado compulsivamente, mas o caso, nota ao i o médico, “foi uma vitória e só foi possível porque o estado de saúde do senhor estava realmente degradado”.

Para se retirar uma pessoa com doença mental da rua, é necessário, em primeiro lugar, que um psiquiatra elabore um relatório que constate que a pessoa tem doença psiquiatra, enviando-o depois para a autoridade de saúde competente, que no seu seguimento emite um mandado de condução. Depois, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) com a Polícia de Segurança Pública (PSP), acompanhados pela associação que opera na área onde vive o sem-abrigo e que o que sinalizou, levam-no ao hospital, onde os psiquiatras decidem se do mandado de condução resulta ou não o internamento compulsivo. Por fim, o internamento é sancionado pelo tribunal – um passo cujo objetivo é zelar pela liberdade dos cidadãos.

“Neste momento, há vários sem-abrigo que não sabem o nome e que estão muito doentes, mas não podem ser tirados da rua porque não se sabe qual o seu nome. Anteontem, fiz três relatórios para as autoridades de saúde sem nome, que responderam que não podem fazer nada porque não têm nenhum nome para colocar na ficha”, lamenta o médico ao i, explicando que as autoridades de saúde são obrigadas a colocar um nome para evitar, por exemplo, que a polícia leve a pessoa errada. “Nos casos das pessoas que não sabem o nome, a lei é omissa”, acrescenta.

Segundo as contas de António Bento, 90% das pessoas sem-abrigo têm doença mental e não são assim tão poucas as que não se lembram do nome. Por isso, apesar de aplaudir o investimento em respostas aos sem-abrigo, como o Housing First, o psiquiatra defende que há um problema de base, da competência do Estado, “que tem uma estratégia nacional”, e em relação ao qual as autarquias pouco podem fazer: “Os responsáveis políticos ainda não perceberam quem são os sem-abrigo”, afirma. Para o psiquiatra, essa questão é fundamental para se conseguir tirar os sem-abrigo da rua, um fenómeno no qual, de resto, a doença mental tem um enorme peso – afeta, de acordo com as suas contas, 90% das pessoas sem-abrigo. Os casos de internamento compulsivo confirmam-no.

“Quanto mais milhões a Câmara Municipal de Lisboa der para este novo Plano, melhor. Não é esse o problema, simplesmente não se está a ir ao fundo da questão. A câmara não pode substituir o Estado”, conclui.