Maria João Valente Rosa. “Não vamos voltar a ter famílias numerosas como antigamente”

Maria João Valente Rosa. “Não vamos voltar a ter famílias numerosas como antigamente”


Em entrevista, a demógrafa antecipa a conferência ‘Nascer Mais, Envelhecer Melhor’ e defende que, para termos mais filhos, é preciso uma sociedade mais igualitária


É uma das oradoras da conferência ‘Nascer Mais, Envelhecer Melhor’, que decorre hoje. Faz sentido uma conferência que junta natalidade e envelhecimento?

O nascimento e o envelhecimento são dois temas naturalmente ligados, nós só conseguimos envelhecer se nascermos. E na atualidade, quer em termos de nascimentos quer em termos de envelhecimento, estamos a bater recordes históricos. Em Portugal, nunca como hoje – nos anos mais recentes – se nasceu tão pouco. Desde 2011 que o número de nascimentos é inferior a 100 mil por ano. Aliás, em 2018 foi 87020. No início da década de 1960, quando Portugal tinha cerca de mais um milhão e 400 mil habitantes que atualmente, nasciam em média por ano cerca de 200 mil crianças. Estamos com níveis de natalidade muito baixos. Ao mesmo tempo, a população nunca esteve tão envelhecida e o número de pessoas com 65 ou mais anos ultrapassa o número de jovens desde 2001. No início dos anos 70, existiam mais de dois milhões e 400 mil jovens, em 2018 existiam menos de um milhão e 500 mil. Em contrapartida, o número de idosos, que no início dos anos 70 era inferior a um milhão, hoje é superior a dois milhões e 200 mil. Isto quer dizer que a sociedade mudou muito e enfrenta novos desafios – estamos com tempos novos de sociedade.

Que novos tempos são esses?

A sociedade passa a ter um corpo diferente, verticaliza-se e existem cada vez mais gerações diferentes em presença. Não é por acaso que se nasce menos do que se nascia no passado nem é por acaso que estamos a envelhecer: estamos a envelhecer em virtude da diminuição do número de nascimentos, que por sua vez é fruto de uma série de fatores que têm que ver com o desenvolvimento da sociedade. Hoje, por exemplo, o valor da criança é bem diferente do valor que tinha no passado, a criança adquiriu um valor muito emocional. A criança hoje não tem o valor económico que tinha no passado, quando era mais um braço para trabalhar, representava alguma segurança na velhice e ao mesmo tempo a mortalidade infantil era extremamente elevada, o que fazia com que a probabilidade de se ultrapassar com sucesso o primeiro ano de vida fosse muito inferior à atual – aliás, Portugal era um país com níveis vergonhosos no quadro europeu, estávamos no topo pelos piores motivos. Tínhamos uma população, ao mesmo tempo, muito menos escolarizada: as mulheres eram muito pouco escolarizadas e trabalhavam muitas vezes não numa ótica de afirmação pessoal mas para compensarem o rendimento do trabalho do marido, quando o contexto atual é bem diferente. Em resumo: a sociedade portuguesa desenvolveu-se e progrediu a vários níveis.

A criança hoje é um projeto, não é?

Sim, a criança passou a ser entendida como um projeto, em que se pensa muito e que se deseja e que se pretende que seja o melhor recebido possível. Houve uma diminuição na quantidade mas um sopro muito grande na qualidade de vida das crianças. Simultaneamente, a mortalidade diminuiu também nas idades superiores, o que significa que cada vez mais pessoas que vão chegando às idades mais avançadas e vivem mais tempo. Portanto, a população envelhece, por um lado pela diminuição dos jovens, pela diminuição dos nascimentos, e por outro lado pelo aumento das pessoas que vão atingindo as idades mais avançadas.

Essas duas tendências são próprias do mundo dito ‘desenvolvido’ ou são globais?

O mundo como um todo também está a envelhecer, é uma tendência global. A Europa foi o continente que começou a envelhecer mais cedo, hoje é o mais envelhecido do mundo, mas no quadro global o mundo como um todo também está a envelhecer. Mas claro, os níveis de envelhecimento são muito inferiores aos da Europa.

E isso cria desafios.

Nós tínhamos uma sociedade muito pensada e que dava respostas a um modelo de funcionamento que estava adequado a um perfil etário, mas o perfil mudou e no futuro iremos estar mais envelhecidos do que hoje, o que significa que vamos ter de nos adaptar a este perfil etário. Ou seja, não é tanto tentarmos negar o perfil e dizer que se calhar podemos deixar de envelhecer no futuro, é assumir que de facto estaremos mais envelhecidos no futuro do que hoje e por isso é importante que todos nós enquanto poderes públicos, organizações e individualmente nos preparemos para este cenário, de que nós do ponto de vista social também não queremos abrir mão – quem não gosta de viver mais tempo? Por isso, são precisas estratégias para lidar e responder ao envelhecimento, mas também a nível individual: temos mais tempo de vida, mas o que é que vamos fazer para dar conteúdo a esse acréscimo de anos e para não sermos apanhados de surpresa como os nossos pais ou os nossos avós que, de um momento para o outro, se viram pela frente com um bónus de vida extraordinário?

Os avanços na medicina permitiram que se viva até mais tarde, mas os idosos de hoje têm qualidade de vida?

Segundo os vários indicadores que se conhecem, em Portugal, o cenário da qualidade de vida a partir dos 65 anos e do modo como essas pessoas se auto percecionam não é dos mais felizes, pelo contrário. Por exemplo, se nós compararmos Portugal com a Dinamarca – dois países que têm a mesma esperança média de vida -, percebemos que, enquanto em Portugal, na maioria do tempo a partir dos 65 as pessoas entendem que vivem com incapacidades, na Dinamarca verifica-se o contrário. A perceção que temos do estado de saúde, que varia consoante as idades – quanto mais velhos somos, menos consideramos que o nosso estado de saúde é bom ou muito bom – é baixa: em Portugal, 16% dos homens e 9% das mulheres com 65 ou mais anos diz que têm um estado de saúde bom ou muito bom. Em média, na UE, 41% dos homens e 35% das mulheres com 65 ou mais anos diz que tem um estado de saúde bom ou muito bom. Isso é algo que é diferencial no território e é pior no Algarve, em Lisboa e no Alentejo, segundo o inquérito nacional de saúde de 2014. Temos de pensar seriamente em tornar este bónus de vida um bónus agradável e isso tem de ser feito de várias formas, além da saúde. Se não inserirmos conteúdos neste prolongamento do tempo de vida, cria-se um vazio.

A par do aumento do envelhecimento e da diminuição da natalidade, também a fecundidade está a diminuir, não é?

O número de nascimentos está a diminuir, por um lado, e por outro o número médio de filhos por mulher também está. Portugal perdeu a capacidade de substituição de gerações no início dos anos 80, em 1982. Para que cada geração se substitua é preciso que cada mulher tenha em média 2,1 filhos. E porquê 2,1? Para que cada mãe deixe uma mulher, porque a probabilidade de ter um filho do sexo masculino é superior à probabilidade de ter uma filha e então, jogando com essa probabilidade, é preciso que as mulheres tenham um bocadinho mais de dois filhos. Se a probabilidade fosse igual seria 2, porque um era rapaz e outro rapariga, mas como a probabilidade é diferente é preciso ter mais do que dois filhos para garantir uma futura mãe. Nenhum dos países da União Europeia (UE) tem assegurada a substituição de gerações. Nós fomos um dos países que mais tardiamente começou a manifestar decréscimos acentuados de níveis de fecundidade, mas neste momento somos um dos países da UE com níveis de fecundidade mais baixos.

Qual o índice em Portugal?

No último inquérito à fecundidade, de 2013, conduzido pelo INE em parceria com a fundação Francisco Manuel dos Santos, foi possível perceber que havia uma diferença entre a fecundidade que as pessoas tinham, muito baixa, e aquela que as pessoas tencionavam ter, que era mais alta e rondava 1,8 filhos por mulher. Ou seja, há um diferencial importante entre os filhos que se tem e os que se tencionava ter. Portugal é muito marcado por uma situação que se destaca no quadro europeu: são poucas as mulheres que acabam o período fértil sem filhos em comparação com os outros países europeus. Acabam por ter filhos, muitas vezes tardiamente, mas a grande questão cá não está em ter ou não ter filhos, está na passagem do primeiro para o segundo filho. E é aí que nos destacamos em relação a outros países da UE: temos uma elevadíssima percentagem de filhos únicos e não fazemos a passagem do primeiro para o segundo filho, que está associada a uma série de aspetos.

Que fatores?

O primeiro filho explica-se facilmente: as pessoas desejam-no e é um projeto muito bem pensado. Depois, há uma série de fatores que tornam a passagem para o segundo filho algo difícil, além da experiência que se tem com o primeiro. A questão do apoio à primeira infância é complicada, os pais perguntam-se onde é que vão deixar o filho porque estão a trabalhar. Muitas vezes pensa-se que a fecundidade é um assunto que diz apenas respeito às mulheres, mas não, diz respeito às mulheres e aos homens. Por outro lado, há uma questão que também é importante, para além da questão financeira e da estabilidade no trabalho: é que é preferível ter somente um filho com mais oportunidades e menos restrições a ter mais filhos. Portanto, há aqui um enfoque na questão da qualidade de vida do filho. E entre os fatores associados à intenção de a mulher vir a ter pelo menos dois filhos, um dos aspetos tinha que ver com o facto de as pessoas reconhecerem a presença paterna enquanto os filhos são pequenos e darem importância ao tempo do pai com os filhos. Do ponto de vista de responsabilidades parentais, estamos em sociedades menos igualitárias e a sobrecarga de se ter um filho recai, essencialmente, para a mãe.

Continua a ser assim?

O inquérito mostra que, em tarefas que implicam muito tempo, é a mãe a estar presente. Quem é que fica em casa quando o filho está doente? A mãe. Quem leva à escola, quem leva ao médico, quem acompanha nos trabalhos de casa? Essencialmente a mãe. O pai, por vezes, ajuda. O facto de se ser mãe muitas vezes põe em causa o projeto de vida profissional, é um ambiente muito pouco amigável que se vive para ter um segundo ou um terceiro filho, porque é extremamente difícil quer do ponto de vista laboral, quer do ponto de vista doméstico. Nas sociedades mais igualitárias, como a Suécia – onde não se pensa que é só sobre a mulher que recai a responsabilidade parental – é muito mais fácil ter-se um segundo e um terceiro filho, quando as responsabilidades são mais repartidas. Por outro lado, o inquérito mostrou que a questão do apoio à primeira infância é extremamente importante. Além disso, percebeu-se que a qualificação/instrução não é inimiga da natalidade – aliás, os países mais qualificados são países com níveis de fecundidade mais elevados. Por isso, uma das respostas para o aumento da natalidade poderá ser o aumento da qualificação, porque isso ajuda de algum modo a todo este processo de decisão. Mas a natalidade também é influenciada por outros fatores: por exemplo, a imigração. Nós fomos particularmente marcados por um período de saídas de pessoas nas idades certas, que a terem filhos tiveram nos países para onde foram, e um menor número de entradas de pessoas também nas idades certas. Portanto, a imigração e os saldos migratórios positivos são um contributo extremamente importante para o reforço da natalidade no país de acolhimento.

É realista pensar que podemos vir a ter famílias numerosas como antigamente?

Não, não vamos voltar a ter famílias numerosas como antigamente. Há várias razões que nos levam a admitir essa impossibilidade. A primeira tem que ver com os resultados do inquérito à fecundidade: percebe-se que as pessoas não querem ter muitos filhos, mesmo em circunstâncias idílicas. Ao mesmo tempo, olhando para outros países muito mais avançados e desenvolvidos do que Portugal, onde os obstáculos têm muito menos influência do que cá, nem esses chegam ao 2,1. Portanto, ter poucos filhos está em linha com as sociedades dos tempos modernos. Não é preciso é serem tão poucos quanto os que temos. Por isso, pensar em sociedades dos novos tempos é pensar em sociedades em que as crianças irão ser menos do que foram no passado, porque a sociedade mudou.

Considera que o estado da saúde – este verão, por exemplo, faltam obstetras em vários hospitais – pode desmotivar as pessoas a terem filhos?

Não quero comentar esse assunto neste contexto.

Existem políticas para o incentivo à natalidade em Portugal?

Políticas no sentido de uma coerência no tempo e no território de ações que levem a um determinado objetivo, não existem. Existem, sim, medidas avulsas. Umas vezes num sítio, outras vezes noutro, vão todas mais ou menos num sentido. Existem também outras medidas paralelas, que podem ter efeitos também. É o caso das políticas migratórias, ou, por exemplo, ou da licença parental dos pais no momento do nascimento dos filhos, que recentemente foi alargada. A fecundidade é um fenómeno social total, ou seja, implica múltiplas dimensões, não há apenas um elemento, existem múltiplos. Não há uma medida que vai resolver. Por outro lado, é preciso pensar que a decisão de ter ou não ter é uma decisão que se deve respeitar em liberdade. E é no tal diferencial entre o número de filhos que se tem e o número de filhos que se esperaria ter que penso que todas as medidas deverão incidir. Falando de múltiplas dimensões, a educação é essencial. Começar a explicar desde pequenino a importância que tem repartir responsabilidades entre meninos e meninas é fundamental, e as escolas aqui têm um papel muito importante. Ao percebermos que são as sociedades mais igualitárias as que têm níveis de fecundidade mais elevados, temos também de começar a preparar os futuros adultos para essas sociedades cada vez mais igualitárias. Pode dizer-se que é uma medida completamente indireta, mas se calhar tem um efeito muito mais profundo do que uma medida esporádica, conjuntural e muito localizada. O apoio à primeira infância para quando, por exemplo, a pessoa não tem familiares perto com quem deixar o filho, é importante. E é preciso também medidas quanto à questão do tempo, porque não basta ter o filho, é preciso ter-se tempo para acompanhar o filho. Isso é um fator que, nesta sociedade, em que valorizamos muito o número de horas que trabalhamos e não tanto o resultado do nosso trabalho – porque se fizermos o mesmo trabalho em metade das horas não somos tão bem vistos, quando deveria ser exatamente ao contrário – também é prejudicial à fecundidade e natalidade.