Robert Walser. Acaso um escritor de êxito não é, à sua maneira, um assassino?

Robert Walser. Acaso um escritor de êxito não é, à sua maneira, um assassino?


A pergunta é de Walser, que se sentiu apagado e asfixiado pelos escritores para quem o mais importante é conseguir um nome. Já o suíço abandonou a literatura declarando alegremente que preferia vagabundear e percorrer léguas e léguas durante dias inteiros. 


Se Fernando Pessoa perdia os estribos da consciência quando esta se tornava mais raivosa, e se deixava arrastar, como se cada ímpeto tivesse a força de um cavalo, era porque daí tirava lucros fabulosos. Em vez de sufocar, lançava as mãos à garganta de um outro e ficava dos dois lados da tortura, ao mesmo tempo torturado e torturador, desaustinado e tirando notas, friamente, vendo contorcer-se essa outra sombra. Nessa incessante mascarada, ensaiava fugas e escancarava o espírito para que os ladrões cheirassem a oportunidade. Daí esse saque faustoso que nos legou. 

E quando Álvaro de Campos toma um grande balanço, num poema sofrível, para acabar num dos seus melhores versos – “Merda, sou lúcido!” –, não devemos deixar de nos espantar com os ecos desta constatação. Ela mesma nos diz que a lucidez é o modo mais seguro de se andar pelos dias, numa vadiagem que se enobrece numa hora e, na seguinte, perde tudo, estar na raiz do assombro, no caminho do deslumbramento e das grandes perturbações. De algum modo, aqui estamos todos para acabar loucos. E se chegarmos a isso é sinal, pelo menos, de que não perdemos de todo o juízo.

Robert Walser surge à cabeceira desta prodigiosa mesa onde tantos se sentam, mas cada um à vez, a sós, admirando a forma como, com toda a fome do mundo, diante do banquete, o anterior comensal mais não fez que deixar tudo em migalhas e, depois, parece ter perdido o apetite. Sobre Hölderlin, que bem fundo na sua loucura tinha ainda acessos magníficos de lucidez, Walser diz a Seelig que não foi tão infeliz como se pensa, mas que de algum modo se escapuliu e podia pelo menos “sonhar num modesto canto, sem ter que responder a contínuas solicitações”. Pode parecer uma desculpa mas, às vezes, a loucura é isso, um modo de se desculpar, pedir licença para se ausentar longamente e fugir desses modos gerais de ser apertado, constrangido, obrigado a portar-se de acordo com as regras e (pior) a lógica dos outros. A este respeito, já Artaud havia sido muito claro no texto em que reage à sua expulsão do grupo surrealista, em 1927, dizendo: “Não há disciplina à qual me sinta forçado a submeter–me, por mais rigoroso que seja o raciocínio apelando à minha adesão. Dois ou três princípios de morte ou de vida encontram-se para mim acima da mínima submissão precária. A lógica sempre me pareceu estranha”.

Quanto a Walser, no breve ensaio que Walter Benjamin lhe dedicou e onde se encontra o esteio para que uma tão sagaz linhagem de autores tenham vindo a celebrá-lo, diz-nos que há nele uma firme cumplicidade com os seus personagens, fala de “uma nobreza infantil” que se encontra nos contos de fadas e, em geral, nesse territórios que a noite e a loucura dominam. E aponta para os mitos, que se persistem é devido ao vigor da sua loucura.
Walser escreveu certa vez: “Horroriza-me a ideia de poder triunfar neste mundo”, e se não estava interessado no êxito, é natural que as suas personagens devam a sua decência a um certo grau de inconsciência, criaturas anónimas, marcadas pelo fracasso, numa deriva de autoapagamento. De resto, desenvolvendo um dos desabafos que Walser fez a Seelig, Elias Canetti notou que “todo o escritor que conseguiu um nome e que o impõe sabe muito bem que, por esta razão, deixa de ser escritor, pois administra posições tal como um burguês qualquer”. Segundo ele, “o escritor de êxito assassina os verdadeiros escritores, aqueles que foram muito mais puros que ele e que ele dificilmente pode suportar ao seu lado, embora, isso sim, esteja disposto a venerá-los no manicómio”.

Os heróis de Walser são, por isso, exemplos da mais discreta insurreição. São esses insubmissos que não barafustam assim tanto, mas sabem que o melhor é que o mundo não dê por eles, não se sinta ameaçado, não tenha de pôr cobro à situação. Sebald viu em Walser um vidente no que toca a ninharias e, como se vê, chega a ser comovente como a sua obra se tornou um processo em aberto, um tanto ventoso, e as gerações vão-se sucedendo, e alguns espíritos mais inquietos vão ali beber. Mais do que um amparo ou um cajado, a sua obra é como um alívio, um apoio moral à desistência, o de um escritor que foi levado a abdicar das aspirações mundanas, pois sempre lhe foi dito que o seu melhor não chegava. Isso fez dele um personagem teimosamente esquivo, um autor que virou costas ao romance, a essa triunfal unidade épica, e se remeteu aos momentos de rasgo, cultivando uma obra feita apenas das articulações, dos interstícios do romance, esses longos suspiros, e passou a abominar aquelas monumentais estruturas perfeitas, obras de amanuenses, de escriturários, reitores das escolas de clausura.

A Seelig confessou o martírio que foi ter entretido esperanças como escritor: “Sabe qual é a minha desgraça? Preste bem atenção! Todas essas pessoas adoráveis que se julgam no direito de criticar-me e dar-me ordens são apoiantes fanáticos de Hermann Hesse. Não confiam em mim. Para eles há apenas ou- -ou: ‘Ou escreves como Hesse, ou és e serás sempre um falhado.’ É assim, com este extremismo que me julgam. Não têm qualquer confiança no meu trabalho. E é essa a razão por que vim parar ao sanatório. Sempre me faltou a auréola do santo, e só com ela se pode triunfar na literatura – basta um qualquer halo de heroísmo, de resignação ou algo do género, e eis o caminho para o sucesso…”

Já nesse conto central na sua obra que é “ O Passeio”, Walser admitia: “Aliás, é verdade que em tempos andei por aí perdido no nevoeiro e em inúmeras inconstâncias e perplexidades e frequentemente me senti miseravelmente abandonado. Mas acho que é belo lutar. Não é das alegrias e dos prazeres que um homem se orgulha. Só o tornam orgulhoso e contente do fundo da alma as dificuldades corajosamente vencidas e os sofrimentos pacientemente suportados. Mas sobre isto ninguém gosta de falar muito”.

A sua obra ensaia infinitas desculpas para se desembaraçar do enredo, escapar à camisa-de-forças dessas ficções que caminham para a grande escala e, paradoxalmente, parecem perder o pé, para forçar simulacros que de algum modo atraiçoam a inconsútil contemplação do mundo. Walser prefere tomar posição por esses que se aferram aos prazeres daninhos, e noutro momento daquele conto diz: “Não hesitaria em dar muito, em sacrificar mesmo o meu braço ou a minha perna esquerda, se assim pudesse contribuir para recuperar o antigo e bom sentido da probidade, a antiga e boa frugalidade, se pudesse devolver ao país e às pessoas aquela modéstia e honradez que, com pesar de todos os que sinceramente se importam, se perderam consideravelmente. Maldita seja a mórbida fantasia de se querer parecer mais do que se é. Uma verdadeira catástrofe, é o que é, espalha no mundo o perigo da guerra, a morte, a miséria e o ódio, e fixa em tudo o que existe uma máscara de maldade e perfídia”.

A sua prosa, que abre mão de uma intriga sobriamente urdida, prefere gozar, como se fosse impelida pelo vento, todas as coisas com que se cruza, e é mais fácil vê-lo perambular, entretendo fantasias taralhoucas, jogos que se fazem valer de certos desequilíbrios, esses raros ângulos que nos empurram para um deleite tocado pela demência, e criam no leitor uma estranha afeição, do que vê-lo sentado à mesa, de volta de uma operação burocrática. De tal modo que mesmo Kafka, um tão duro juiz, na sua admiração por Walser nos diz mais sobre o génio negligente deste suíço que escrevia em alemão, a qualidade quase terapêutica da sua escrita. Se Benjamin diz que “os soluços são a melodia do palavrear de Walser” e que há como um choro nela, também adianta que se as suas obras “têm atrás de si a loucura”, algo nelas há de feliz e, ao mesmo tempo, de inquietante, pois “todas elas estão curadas”.

Depois do prestígio que a literatura chegou a conferir, é natural que, mesmo quando este se esfumou, persista uma atração que chama a si as naturezas diabolicamente inseguras, egos que necessitam de ver reconhecida a sua grandeza. E a lucidez de Walser está, desde logo, na recusa dessa loucura operosa que revela de um modo bem mais destrutivo os comportamentos degenerados e patológicos que a sociedade espevita. “Hoje, os escritores aterrorizam os leitores com os seus aborrecidos tijolos”, diz ele a Seelig. “Não é sinal do bom gosto dos tempos ter a literatura esses ademanes imperiais. Antes era humilde, natural. Hoje tem maneiras de soberana. O povo deve estar-lhe submetido. É uma evolução doentia”.

A obra de Walser responde a esse apelo que formulou algumas décadas depois Cesariny: “Sai-se para a literatura quando é da literatura que é preciso sair”.

Ler Walser é já estar de saída, uma escrita que não se substitui nem estraga o gosto de olhar, o confronto simples com as coisas, resgatadas a um lirismo que empanturra, sacia e, no fundo, retira ao homem todo o gozo que não seja mediado. Daí que o desleixo e o seu lado insólito ou esquivo corresponda a um abandono. Se tantas vezes deparamos com construções deficientes, de uma imperfeição de quem escreve como se assobiasse, sem parar para se corrigir, sentindo a linha misturar-se aos elementos nessa benevolência do canto que gosta de se perder, vale a pena dar algum crédito à confissão de Walser de que nunca alterou uma linha das coisas que escreveu. E se não é uma arrogância, a falta de emendas caminha para uma combinação, como notou Benjamin, “da total ausência de intenção e da mais extrema intenção”. Ora, isto não passa apenas pelo corte com o artifício que faz de tanta literatura uma razão fria, uma espécie de arca congeladora. O célebre crítico alemão vinca que, em Walser, a insignificância tem peso e o descuido é persistente. É já um virar de costas à literatura.

Mas é, paradoxalmente, um outro nível de aproveitamento, de recriação à beira da inanidade, redobrando as costuras do mundo, numa admirável e às vezes enervante forma de exagerar a afetação típica da literatura. E Walser, de resto, aplica-se particularmente ao descrever certas interações sociais e mostra um especial gozo em provocar o curto-circuito nas expetativas de quem confronta, dirigindo-se-lhes delicadamente, para logo armar algum engodo, numas trapalhadas cómicas de alguém que parece ter o desejo de agradar mas se sente repuxado, desviando-se, divagando, excedendo–se, até beirar a inconveniência. De um elegante cavalheiro, não demora muito a cair na caricatura que faz um refinado vagabundo. Assim também acontece na literatura, como vai brincando à insensatez, como quem deitasse a mão aos folhos de um vestido, fazendo um cumprimento à senhora, elogiando-a, para logo destapar um ombro, espreitar uma constelação de sinais ou uma cicatriz qualquer.

Por outro lado, se o espartilho social o estrafega, quando se põe a caminho, aí nada de tortuoso subsiste, e o soluço dá lugar ao alento de uma passada firme, ao embalo dessas desatadas liturgias pagãs, e esta “pequena forma” presta-se a um longo e acidentado tratado sobre a alegria da diletância. Uma escrita jubilosa, num “deixa andar em que cabem todas as formas, da mais graciosa à mais austera”, como notou Benjamin. A sua toada, tantas vezes repetitiva, converte–se em algo de musical. Notas vulgares que se enriquecem pela afinação, num exuberante catálogo de impressões que, isoladas, parecem banais, mas juntas pulsam de vida. E toda a imperfeição joga, o abuso de advérbios de modo, adjetivos algo inseguros, como desenhos de criança sem grande técnica, mas com aquele peso da vida arrancada às suas raízes… Nada como mostrá-lo: “Enquanto seguia o meu caminho como o melhor dos meliantes ou como o vagabundo, ladrão diurno, vadio e andarilho mais refinado, passando por toda a espécie de jardins cuidados e confortáveis, regurgitando de legumes saciados, por flores e pelo perfume das flores, ladeando árvores de fruta e estacas de feijão e pequenos arbustos cobertos de feijão, altas searas de centeio, aveia e trigo, passando ao lado de uma serração com muitas madeiras e aparas, e perto de húmidos relvados e de um regueiro de impecável sussurro, ou de um rio ou riacho, encontrando com gosto toda a espécie de pessoas, como simpáticas vendedeiras fazendo o seu negócio, passando pela sede de uma associação prazenteiramente enfeitada com alegres bandeirolas, tal como por muitas outras coisas úteis e benéficas, por exemplo uma macieira especialmente bonita e feérica e sabe Deus por quantas outras coisas, como é o caso dos arbustos em flor dos morangueiros, ou melhor ainda pelos próprios morangos delicadamente maduros e rubros, enquanto toda a espécie de pensamentos razoavelmente belos e agradáveis me ocupavam sempre fortemente, porque ao passear se geram e insinuam espontaneamente muitas ideias súbitas, clarões de luz e iluminações esclarecedoras que esperam ser cuidadosamente elaboradas”…