A visão de poças de sangue derramado por centenas de cristãos assassinados pelas bombas do Daesh, em três igrejas a abarrotar de gente que celebrava a Páscoa no Sri Lanca, fizeram-me inevitavelmente recordar o mar de sangue que inundou as ruas de Jerusalém, derramado pelos muçulmanos em 5 de Julho de 1099, quando os cruzados do Papa Urbano ii e do fanático propagandista Pedro o Eremita conquistaram a cidade e degolaram todos os habitantes que lhes apareceram pela frente.
A fúria homicida de pregar a religião e vingar Deus degolando os infiéis ou matando-os à bomba não é, como se vê, exclusiva dos fundamentalistas islâmicos. Para combater o fanatismo religioso e os actos de terrorismo praticados em nome de Deus, convém não ignorar a história das três religiões monoteístas, por causa das quais tanto sangue tem sido derramado através dos séculos – e vem perdurando até hoje.
A história, agora tão evocada por causa do pavoroso incêndio que a mutilou, dos nove séculos que já leva a Catedral de Notre-Dame de Paris – cuja construção foi lançada em 1163 pelo bispo Maurice de Sully e terminada um século depois, durante o reinado do santo Luís ix, o monarca francês instigador e chefe das duas derradeiras cruzadas (vii e viii), que ignorou Notre-Dame e mandou construir ao pé a Sainte-Chapelle – justifica que evoquemos também esse tempo das Cruzadas, entre 1096 e 1270. Até porque foi de França e chefiadas por franceses que quase todas elas partiram.
No que se refere à Igreja Católica, há que ter a noção de que sumos pontífices como o Papa João xxiii ou como o Papa Francisco são exemplos raríssimos de aggiornamento, apaziguamento e tolerância que infelizmente não correspondem ao perfil da maioria dos Papas ao longo da história da poderosa instituição sediada no Vaticano. De facto, as Cruzadas instigadas e proclamadas pelos Papas desde Urbano ii, no final do séc. xi – pregadas por religiosos fanáticos como Pedro o Eremita e São Bernardo de Clairvaux, ou por ingénuos como São Francisco de Assis, e conduzidas nos campos de morte por reis, príncipes e senhores feudais que confundiam o fervor religioso com as ambições políticas e territoriais –, são hoje manchas indeléveis e imperdoáveis.
No séc. xx, aliás, houve esse cruel exemplo da “cruzada” fascista levada a cabo em Espanha pelo caudilho Francisco Franco, com a bênção dos bispos espanhóis e dos Papas Pio xi e Pio xii. A contabilidade dos mortos abeirou-se do milhão. Mas também assistimos, nos primeiros anos deste séc. xxi, às terríveis “cruzadas” desencadeadas pelo “cristão renascido” George W. Bush, no Afeganistão e no Iraque, que prosseguem na Líbia e na Síria, e que já terão ultrapassado certamente o milhão de mortos. É justo que se diga que o Papa João Paulo ii tentou evitar, por todos os meios diplomáticos, a cobarde invasão do Iraque, e condenou abertamente estas “cruzadas”.
Mas, entre os Papas que ordenaram as oito cruzadas medievais, entre 1096 e 1270 – tanto por razões políticas, para submeter o Oriente aos latinos, como religiosas, pois que “Deus assim o quis” –, destacam–se sobretudo três Papas. Primeiro do que todos, Urbano ii, Papa entre 1088 e 1099, que proclamou, em 1094, a i Cruzada, pregada por Pedro o Eremita, e cujo auge foi a conquista de Jerusalém mergulhada em sangue muçulmano. A cidade viria a ser reconquistada por Saladino em 1187.
Segue-se Eugénio iii, Papa entre 1145 e 1153, que proclamou, em 1147, a ii Cruzada, pregada pelo São Bernardo de Clairvaux (de quem Pietro Bernardo Pignatelli, futuro Eugénio iii, tinha sido discípulo). Narra Voltaire em 1750, na sua magnífica História das Cruzadas, que, “numa dessas pequenas guerras civis que um governo feudal tornava inevitáveis, as tropas do rei de França, Luís o Jovem, lançaram fogo à igreja de Vitry, e uma parte da população, que nela se tinha refugiado, morreu queimada” – razão pela qual “foi fácil persuadir o rei de que só na Palestina ele poderia expiar esse crime”. E o certo é que Luís o Jovem “fez a promessa de mandar degolar milhões de homens, para expiar a morte de quatro ou cinco centenas de habitantes da região de Champanhe”. O destino desta ii Cruzada, que terá reunido mais de 400 mil homens, entre franceses e alemães que nela participaram, foi a derrota de multidões desorganizadas conduzidas por chefes sem experiência e sem arte em territórios desconhecidos. O destino de Luís o Jovem, que levava consigo sua mulher, a rainha Leonor, foi no mínimo humilhante. Narra Voltaire que o príncipe de Antioquia, Raimundo, em casa de quem o casal real se refugiara, “fez amor publicamente com Leonor”. E acrescenta: “Diz-se mesmo que ela esquecia todas as agruras de tão cruel viagem com um jovem Turco de rara beleza, de nome Saladino”. Muitos cruzados franceses desertaram e tornaram-se maometanos, em 1148, para obterem comida. A ii Cruzada foi um fiasco estrondoso.
Finalmente, Inocêncio iii, Papa entre 1198 e 1216, proclamou em 1202 a iv Cruzada, que os venezianos conseguiram “desviar”, a troco de recompensas aos cruzados, para estes os ajudarem a reconquistar o porto de Zara, no Adriático. Dois anos passados, em 1204, foi também este Papa que abençoou a selvática tomada de Constantinopla pelos cruzados, que chacinaram os cristãos ortodoxos gregos e puseram a cidade a saque. E foi igualmente ele a proclamar, em 1209, a sangrenta Cruzada contra os Albigenses, comandada por Simão de Monforte e pelos senhores feudais do norte da França, contra populações do sul consideradas heréticas. Dizem os historiadores que “foi pelo ferro e pelo sangue que todos os heréticos desapareceram do Languedoque, e que surgiu o novo braço armado da Igreja Católica: a Santa Inquisição”. E foi em 6 de Julho de 1126, durante uma viagem ao norte da Itália, quando já organizava a v Cruzada, que o Papa Inocêncio iii morreu, um ano antes do início desse novo fiasco sangrento.
Em 1182, um grande tremor de terra – bem mais extenso do que seria o que devastou Lisboa em 1775, segundo narra Voltaire, arrasou a maior parte das cidades da Síria e do pequeno reino de Jerusalém: “Numa centena de locais, a terra engoliu os animais e os homens. Pregaram aos Turcos que Deus estava a punir os cristãos (que estavam a combatê-los); pregaram aos Cristãos que Deus estava a manifestar-se contra os Turcos; e os combates entre ambos prosseguiram sobre os escombros da Síria”.
“Foi no meio de tantas ruínas” – continua Voltaire – “que se ergueu o grande Salaheddin, a quem na Europa chamavam Saladino. Era um Persa de origem, nascido (em Tikrit) no pequeno país dos Curdos, nação sempre guerreira e sempre livre. Sendo ele um desses capitães que se apoderaram de terras dos califas, nenhum foi tão poderoso como ele. Conquistou, em pouco tempo, o Egipto, a Síria, a Arábia, a Pérsia e a Mesopotâmia”. E em 1187, aproveitando-se das sérias rivalidades entre facções que dilaceravam o Reino Latino de Jerusalém – desde a coroação de Guy de Lusignan como rei, em 1186, muito contestada pelos seus barões, que consideravam “a sua legitimidade duvidosa e a sua imbecilidade lendária” –, Saladino enfrentou e venceu, na Batalha de Hatim, as tropas cristãs que tinham avançado contra ele numa nova cruzada. Ao chegar às portas da já indefesa Jerusalém, Saladino deu provas de extraordinária clemência, generosidade e tolerância: não exigindo qualquer resgate pela libertação dos cristãos sobreviventes da batalha, que ele fizera prisioneiros; concedendo à rainha Sibila, mulher do rei deposto, a liberdade de se retirar para onde quisesse; e surpreendendo o rei cativo ao tratá-lo – conforme sublinha Voltaire – “como hoje os prisioneiros de guerra são tratados pelos generais mais humanos”. Segundo alguns historiadores, Guy de Lusignan ainda ouviu Saladino dizer-lhe que “os verdadeiros reis não se matam uns aos outros”.
Saladino morreria em 1195, em Damasco, admirado pelos muçulmanos, pelos judeus e pelos próprios cristãos. Para o seu túmulo levou apenas o lençol que o envolveu, como único despojo das suas conquistas. Terá determinado pelo seu testamento que fossem distribuídas esmolas em montantes iguais aos pobres maometanos, judeus e cristãos, pretendendo com tais disposições significar – escreve Voltaire – que “todos os homens são iguais, e para os socorrer não é preciso saber o que eles crêem mas sim o que eles sofrem”. E Voltaire remata: “Poucos dos nossos príncipes cristãos foram capazes duma tal magnificência; e poucos dos cronistas de que a Europa já está sobrecarregada terão sabido fazer-lhe justiça”. Só Ricardo Coração de Leão lhe terá feito justiça.
Além de cemitério de dois milhões de cruzados e, infalivelmente, de vários milhões de muçulmanos, cristãos ortodoxos e judeus, a Terra Santa foi também cemitério de dois monarcas europeus no comando de cruzadas. Frederico Barba Ruiva, o imperador romano-germânico, finou-se no dia 10 de Junho de 1190, no decorrer da iii Cruzada – ou afogado ou vítima de ataque cardíaco quando se banhava nas águas do rio Salepe (hoje rio Göksu, na Turquia) –, o que causou o caos no seu exército e tornou inúteis as vitórias que tinha alcançado e todos os inimigos que tinha massacrado.
Também o seu filho, duque da Suábia, perdeu a vida na cidade de Ptolomaida, entre o monte Carmelo e a cidade de Tiro. Quanto ao piedoso Luís ix, rei de França, mais conhecido como São Luís, morreu a 17 de Julho de 1270, mesmo no fim da viii e última Cruzada. Em 1244, durante uma doença, este rei piedoso e santo disse que “ouviu vozes a ordenarem-lhe que pegasse na cruz e marchasse contra os infiéis”. Por isso decidiu preparar, e ser ele próprio a comandar, aquelas que seriam as derradeiras cruzadas medievais. Fracassou em ambas nos objectivos: conquistar o Egipto aos mamelucos; e converter o sultão de Tunes. Durante a vii Cruzada (1248-1250) foi feito prisioneiro e libertado após ter pago um avultado resgate, retirando-se, cerca de quatro anos, na Palestina. Na viii e última Cruzada, em 1270, já enfraquecido pela doença, rumou à costa da Tunísia com o intuito de “converter” o sultão de Tunes. Mas o Luís ix santo e guerreiro morreria pouco depois de desembarcar, no dia 17 de Julho de 1270, vítima da peste que dizimou os cruzados. Ironia do destino: o rei finou-se no meio das grandiosas ruínas de Cartago.
Sejam as cruzadas cristãs ou a jiade islâmica ou o sionismo ultra-ortodoxo, as “guerras santas” estarão eternamente manchadas pelo sangue de milhões de vítimas inocentes do terror cego. Enganam-se os que dizem que não é a religião que mata, mas tão-só os fundamentalistas que invocam os seus deuses em vão. Porque esquecem a perigosa eloquência dos sacerdotes e profetas e a hábil propaganda que obscurece e suprime a razão, privilegiando a pura emoção e suscitando o fanatismo e o ódio letais.