O almofadeiro do imperador


Há quem se ocupe – com maiores ou menores afã e profundidade – a discutir se os livros de Ryszard Kapuscinski devem ser arrumados na prateleira da literatura, na do ensaio ou na da reportagem, ou a discutir, nomeadamente a respeito da sua publicada biografia, as suas falhas e faltas e os seus pecados e…


Há quem se ocupe – com maiores ou menores afã e profundidade – a discutir se os livros de Ryszard Kapuscinski devem ser arrumados na prateleira da literatura, na do ensaio ou na da reportagem, ou a discutir, nomeadamente a respeito da sua publicada biografia, as suas falhas e faltas e os seus pecados e pecadilhos (como se todos os não tivéssemos e como se isso fosse o que importa quando se discute a obra ou o legado dos que, como genialmente disse o poeta, “se vão da lei da morte libertando”). Eu, que gosto muito da escrita de Ryszard Kapuscinski – e que, já agora, e embora isso não venha ao caso, também percebo muito bem os seus imputados pecados e faltas, embora os não “perdoe” todos –, ocupo-me a lê-lo sempre que posso, em tradução em língua acessível. Recentemente, saiu por cá “O Imperador”, chancelado pela Livros do Brasil. Está lido, e confirmo que gosto muito desta escrita, e que este é das melhores obras que li do autor. E quero lá saber se tem fábula ou não, se é jornalismo ou literatura, e muito menos o que fez na vida o autor para conseguir criar o que criou. Da mesma forma que pouco me importa, por exemplo, para apreciar muito “Viagem ao Fim da Noite”, que Céline pudesse ser uma pessoa que em certa medida suscitaria asco, e por aí adiante, e tutti quanti, e quem puder que atire a primeira pedra, sobretudo carregada pela mãozinha da hipocrisia, et cetera. Uma coisa é o homem, outra coisa é a obra. Ponto final, parágrafo.

“O Imperador” é – pelo menos para mim – um grande livro, um pedaço de escrita admirável, uma criação narrativa bela, astuta, precisa e crua, não tanto sobre Haile Selassie e a sua passagem, e a sua queda, pelo trono da Etiópia, mas mais sobre a questão do poder, ou, como se diria em linguagem mais moderna e mais anódina, da liderança. Antes do mais, a tentação do poder e a soberba, o isolamento e os excessos a que pode conduzir, normalmente com consequências fatais, para terceiros seguramente, e várias vezes também para os próprios que o têm e exercem. Mas do livro fica ainda uma outra vertente, mais subtil, mas não menos importante: a solidão do poder. Não já a voluntária, a que resulta da arrogância, do alheamento da realidade, da volúpia do mandar, mas a solidão que resulta da dificuldade de, muitas vezes, encontrar a medida certa de equilíbrio entre partilhar, ouvir e decidir, por um lado, e, por outro lado, os riscos de confiar realmente, porque – certeza tão velha quanto o tempo – associada ao poder costuma vir também a inveja, a traição e tantas outras coisas que, muitas vezes, constituem ou enorme desafio à arte do seu exercício ou, então, um caminho de sentido único para um lugar onde se está só e, a prazo, perdido. Ao imperador da Etiópia nem o seu eterno e fiel almofadeiro o salvou, embora talvez tenha ajudado a adiar o inevitável, sendo que esse inevitável foi, claro está, em maior medida, culpa do próprio Selassie, embora não saibamos exatamente que mistérios insondáveis e que atos ou omissões de terceiros o levaram onde levaram. O livro levanta apenas uma parte do véu.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira