Fernando Cavaleiro  Ângelo. “Todos tiveram responsabilidades nesta catástrofe que houve em África”

Fernando Cavaleiro Ângelo. “Todos tiveram responsabilidades nesta catástrofe que houve em África”


Escreveu um livro sobre a participação numa guerra hoje esquecida, a do Biafra, onde o Portugal de Salazar jogou uma cartada ao lado dos independentistas


Voavam de dia e de noite e descolavam de pistas de asfalto sempre que eram chamados a intervir no campo de batalha. Aeroportos, pistas, colunas de tropas: eram estes os seus alvos. Os aviões eram pilotados por cinco portugueses que, depois de abandonarem a guerra nas colónias portuguesas, voaram até ao Biafra para lutar pela independência da região, que queria libertar-se da Nigéria. Eram pagos para isso a preço de ouro e conheciam-nos por Falcões do Biafra. Combatiam um bloqueio marítimo, terrestre e aéreo que veio a ser responsável por uma catástrofe humanitária que causou mais de dois milhões de mortos, sobretudo crianças, mulheres e idosos, vítimas de fome. Uma guerra de que as potências ocidentais e a Rússia não ficaram à margem – e Portugal também não, com a PIDE a ter uma interferência indireta no conflito. Portugal foi durante meses trajeto de carregamentos de armas e munições para o Biafra. Salazar apoiava o independentismo de uma região africana numa altura em que travava uma guerra colonial porque interessava ao regime demonstrar que os países africanos não tinham capacidade para se tornarem independentes. Sobre a participação dos pilotos portugueses, as origens do conflito, o envolvimento da PIDE e das outras potências estrangeiras, Fernando Cavaleiro Ângelo escreveu “Falcões do Biafra – O envolvimento secreto de Portugal na Guerra Civil da Nigéria (1967-1970)”, o seu livro mais recente.

A Guerra do Biafra foi das mais mortíferas em África na segunda metade do séc. xx, mas pouco se fala dela. Porque é tão desconhecida?

Na altura havia outros conflitos no mundo que, se calhar, desviaram a atenção. Acredito que, tendo em conta os atores externos no conflito, nomeadamente de apoio ao governo federal da Nigéria, tentou-se abafar a Guerra do Biafra: o Reino Unido, que era um forte apoiante por ter interesses e por ter sido uma das potências colonizadoras da Nigéria; a União Soviética também foi um forte ator neste processo; os Estados Unidos foram mais discretos, por estarem num grande conflito que estava a assolar a política interna norte-americana, a Guerra do Vietname. Todos tiveram responsabilidades nesta catástrofe que houve em África. 

Quais as razões que levaram o Biafra a declarar a independência?

Há sempre uma génese por detrás e a maneira mais fácil de se fazer uma análise é haver uma questão tribal, étnica ou religiosa. Digamos que são os elementos alavancadores para justificar tudo o que aconteceu. Um dos três grupos principais, o de maior expressão, era muçulmano e essa foi a forma de impulsionar este conflito. Há dois atores muito fortes neste processo: são dois oficiais do exército nigeriano com um passado semelhante no que diz respeito à experiência nas Nações Unidas, no conflito do Congo, formação superior nos colégios do exército britânico. Têm um enquadramento ao mesmo nível. Há a questão étnica de o norte querer tomar o sul e, se analisarmos a Nigéria dos nossos dias, ainda hoje impera a questão norte versus sul e cristãos versus muçulmanos. O fator desencadeador do conflito foi a presença de dois grupos étnicos, um cristão e outro muçulmano, tanto é que o tenente-coronel Ojukwu sempre forçou países europeus cristãos, nomeadamente Portugal, Espanha e Itália, a apoiarem-no para fomentar esta ideia de uma luta quase religiosa.

Uma das motivações tinha a ver com os recursos naturais ou essa foi apenas uma das razões para as potências estrangeiras apoiarem um dos lados?

A génese é sempre a dos recursos naturais, leia-se petróleo, é a Realpolitik do petróleo. Os pontos onde há conflitos têm sempre recursos naturais por detrás. Isto não se podia assumir, nem nunca nenhum país admite que um conflito é gerado por recursos, como aconteceu no Norte de África e Médio Oriente no passado muito recente. Essa questão fica sempre nos bastidores, mas o certo é que as potências estavam a combater pelo petróleo. Se formos a ver, quando, em maio de 1967, o Biafra declarou a independência unilateral, as reservas petrolíferas estavam na zona onde o Biafra implementou as suas fronteiras. As empresas, maioritariamente ocidentais, do Reino Unido, estavam lá e tinham interesse em que os recursos ficassem sob a sua alçada. Quando se parte para uma situação de guerra, esta tem de ser financiada e o petróleo era a única forma de o fazer. Quando as tropas federais da Nigéria e as do Biafra entraram em confronto, os recursos do petróleo eram primordiais. 

O Reino Unido apoiou a Nigéria, os EUA mantiveram uma certa distância, Portugal, Espanha e França apoiaram o Biafra. Vê este conflito como legado do colonialismo ocidental de África?

Sem dúvida, em qualquer conflito no continente africano há sempre um certo elemento que tem a ver com a potência colonizadora. Os franceses tinham aqui a intenção de expandir a francofonia e o seu poder naquele país. A Nigéria era o país com a maior população em África, é uma potência tanto na África subsariana como em geral. Em torno da Nigéria havia países que estavam sob controlo ou que tinham posicionamentos favoráveis a Paris. Portugal tinha aqui de jogar as cartas todas: a Nigéria tinha sido muito cética e estava a constituir-se como força opositora ao posicionamento português em Angola, quase vizinho da Nigéria. E, por outro lado, também tinha de afastar os holofotes da comunidade internacional do elevado escrutínio que estava a sofrer naquela altura – o país estava com três frentes de combate e a PIDE era a única entidade que proporcionava informações às forças armadas. Os esforços portugueses estavam todos direcionados e Portugal tinha de jogar com outras armas, nomeadamente nos bastidores e de forma secreta, para fazer com que a confusão se mantivesse naquela região. Além disso, também queria retirar alguns dividendos em termos de posicionamento da diplomacia: fazer com que alguns países aderissem à causa do Biafra para, a médio prazo, caso se consumasse num país aceite, tivesse algum privilégio. 

O apoio português ao Biafra não foi também para que Salazar e o Estado Novo pudessem apontar que, com a descolonização, vêm as guerras civis, podendo usar esse argumento para manter as suas colónias em África, para evitar algo pior?

Não era só Portugal. A África do Sul e a antiga Rodésia, hoje Zimbabué, também tinham essa intenção: mostrar ao mundo que os países que obtiveram a sua independência não conseguem governar-se por eles próprios. Nunca lhes foi permitido terem educação e posicionamento político para poderem governar–se até a independência ser declarada. Isto também é um bocado de mea culpa. Por outro lado, Portugal também tinha 15 Biafras, como se costuma dizer, dentro das suas províncias ultramarinas, por exemplo Cabinda, no norte de Angola, rica em petróleo. Se Portugal mostrasse o seu apoio ao Biafra, poderia beneficiar se os territórios sob controlo português se tornassem um dia independentes, havendo novos Biafras.

Até que ponto a PIDE se envolveu e de que forma?

Foi um envolvimento de fechar os olhos aos movimentos clandestinos e de tráfico de armas e mercenários nos nossos aeroportos. Monitorizavam de perto, relatavam a Salazar, mas não tinham uma interveniência direta no processo. Há aqui alguns apontamentos e informações de que o contacto entre os chefes dos dois órgãos de informação francês e português era de confiança excecional e sabia-se o que se estava a movimentar entre Lisboa, Faro e São Tomé e Príncipe. 

Até que ponto o envolvimento dos cinco pilotos portugueses está relacionado com essa interferência ou não interferência da PIDE?

Os pilotos confidenciaram que foram interpelados pela primeira vez pela PIDE por esta não querer que viajassem com elementos de identificação portugueses, para que não pudesse haver uma colagem a Portugal se fossem capturados. Enquanto andassem em território nacional, não havia problema nenhum; se saíssem do espaço nacional, tinham de estar identificados. Nunca tiveram uma intervenção ou se sentiram pressionados pela PIDE, é esse o relato que fazem. Um dos pilotos foi questionar o responsável máximo da PIDE em Bissau e disse-lhe que não podia assumir nada e tinha os olhos fechados. Certamente que Portugal tinha uma posição na parte das informações. 

Até que ponto os chamados Falcões do Biafra foram importantes para a Guerra do Biafra?

A primeira estratégia na guerra é fazer bloqueio, ou seja, evitar que o nosso oponente se consiga abastecer, quer em armamento quer em dinheiro, petróleo, alimentos, etc. Na sua primeira ofensiva terrestre, a Nigéria subestimou o adversário e o Biafra teve uma reação muito forte. E decidiu partir para a estratégia milenar do bloqueio pelas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas. No bloqueio marítimo, a Nigéria tinha o apoio dos ingleses, no terrestre tinha um contingente muito superior ao do Biafra, mas na frente aérea era mais frágil. 

Como assim?

Os pilotos biafrenses não tinham muita perícia e os poucos mercenários suecos que foram para lá combater foram-se logo embora. Os portugueses tinham mais-valias: eram jovens; tinham acabado de vir da guerra a pilotar aquele tipo de aeronaves, o T-6; tinham perícias elevadas e tinham aquela adrenalina que os jovens têm. Começaram a combater os MiG, o terror do Biafra. pilotados por egípcios, que também não tinham muitas perícias em pilotagem. Os MiG não voavam à noite, o que foi uma limitação dramática, enquanto os portugueses faziam todas as missões. Com permissividade no espaço aéreo, podia haver abastecimentos de alimentos e de munições para travar as ofensivas que eram feitas por terra. 

No seu livro refere que Artur Alves Pereira e José Pignatelli eram vistos como a grande ameaça para as forças nigerianas.

Eram a maior ameaça porque limitavam a maior arma que os nigerianos tinham, a aviação. Destruíram MiG’s e condicionaram os aeroportos nigerianos, fazendo com que perdessem capacidade aérea. Além disso, Artur Alves Pereira e Pignatelli travavam o avanço das forças terrestres nigerianas com os seus voos. Foram extremamente essenciais porque condicionaram as movimentações dos nigerianos. Os nigerianos podiam ter um contingente melhor, armamento mais sofisticado, mas hoje – e também naqueles dias – a guerra aérea era primordial. É a diferença entre ter capacidade antiaérea com alcance para atingir uma aeronave e condicionar os seus movimentos e ficar sempre sujeito a bombardeamentos. 

O conflito no Biafra fez três milhões de refugiados, além de milhares de mortos. O que aconteceu a essas pessoas?

Os relatos dão conta de que o país se pacificou, as pessoas voltaram às suas casas. Muitas crianças desapareceram e, segundo algumas informações que não se conseguem confirmar, algumas crianças foram adotadas por famílias da Europa, EUA e África. Mas a situação de conflitualidade entre grupos étnicos persiste ainda hoje. 

Como se relacionaram os pilotos portugueses com a causa biafrense e com o que viveram na guerra?

O Artur Alves Pereira combateu ombro a ombro com eles até ao último dia, foi das últimas pessoas a sair do conflito, no dia 8 ou 9 de janeiro de 1970. Viveu com aquelas pessoas aquele drama, as crianças subnutridas a morrerem à fome… Não posso falar por ele mas, das conversas que tivemos, via a questão do Biafra com muita atenção.

Pignatelli, por exemplo, teve um colapso psicológico, em grande parte por aterrar em aeroportos noturnos com duas pistas de asfalto e estradas secundárias, e também por causa do poderio nigeriano. Sabe o que fez com que Pignatelli quebrasse?

Bem, estes são pilotos que vinham de teatros de guerra, como Angola e Guiné. Já vinham num estado psicológico que não era o melhor ou o mais apropriado. Há questões e subterfúgios, como o álcool, que em doses excessivas poderão causar algum desequilíbrio. 

Dizem que Pignatelli era melhor piloto quando estava alcoolizado.

Sim, dizem que quando estava alcoolizado era um excelente piloto. Mas isto são tudo questões que, tendo ele já falecido há alguns anos, só ele poderia confirmar. Mas num ambiente de guerra, as pessoas reagem de forma diferente. Há pessoas que reagem de forma fria e conseguem, por exemplo, ultrapassar as dificuldades, e depois há aquelas que começam a entrar em espiral. Além disso, havia outra questão: na altura começou a haver um êxodo de pilotos europeus a irem embora para casa, o que poderá ter impulsionado essa decisão de partir. 

Um desses pilotos europeus era o barão Christian von Oppenheimer, que tinha sido nazi. Como é que um nazi entra no conflito do Biafra?

No pós-ii Guerra Mundial houve muitos que participaram em organizações nazis e entraram no regime de mercenários noutros conflitos pelo mundo fora. O barão foi um deles. Começaram a enveredar por outro tipo de negócios e, naquela altura, as descolonizações começaram a acontecer a uma velocidade astronómica, e eram precisos apoios. Estes indivíduos tinham uma enorme experiência e uma rede de contactos muito boa, podendo ser agentes facilitadores para muita coisa.

Que conclusões retira da sua investigação?

Houve, há 50 anos, uma guerra no Biafra da qual mais ninguém falou. Se começarmos a analisar as guerras que estão espalhadas pelo mundo inteiro, a base é precisamente ipsis verbis o que se passou no Biafra: recursos naturais e povos manietados pelos colonizadores, que os moldaram durante o período colonial. Este estudo quer provar que, por vezes, os grandes atores mundiais estão na génese de todos estes conflitos e, ao fim e ao cabo, os principais prejudicados são sempre os mesmos: a população. E geralmente são as crianças, as mulheres e os mais idosos os mais penalizados.