Voando sobre um ninho de doidos


Entretanto, o país sobressalta-se com os Netos de Moura, os milhões para a banca e um horizonte de contestação social cada vez mais consistente na educação, na saúde e em outros setores órfãos da mesma predisposição do Estado para decidir que banquemos


A atualidade deixa-se tomar por temas induzidos ou incontornáveis que são propagados no éter das realidades e das perceções, quais epidemias, em função da potência dos motores de difusão de turno. A intensidade das tendências e das paixões não iliba uma persistente leviandade e laxismo na apreciação das questões, no escrutínio dos andamentos e na avaliação dos protagonistas. É demasiado fácil desviar as atenções de um qualquer tema, dada a voragem e a falta de consistência com que nos posicionamos nas sociedades modernas, abundantes em fontes, férteis em palcos de liberdade de expressão e inquietas no preenchimento dos espaços da atualidade. É preciso criar notícias ou similares porque há jornais para vender, tempo de emissão para preencher e redes sociais para animar. É preciso entreter ou atrair para o entretenimento. E andamos nisto, sem cuidar da verdade em toda a sua extensão, da responsabilização consequente dos protagonistas e dos caldos de cultura que vão sendo criados.

Neto de Moura e mais uma injeção de dinheiros dos contribuintes numa instituição do sistema bancário português são apenas mais dois exemplos do nosso “água-mornismo” e dos desequilíbrios estruturais da sociedade portuguesa. Por muitas voltas que se deem, voltamos a dois dos principais bloqueios da nossa comunidade de destinos: o funcionamento da justiça e a ausência de uma supervisão eficaz, explicativa e além dos interesses corporativos, financeiros ou políticos.

Na justiça, uma supervisão corporativa, que protege com meras advertências um juiz desfasado da realidade social, da conjuntura e do sentido de normal funcionamento da ordem privada e pública, projeta-se para um patamar de irrelevância no exercício de funções, preenchendo apenas a função de afago dos egos da classe, entediados entre a defesa de privilégios e arremessos de falta de meios, como se esse não fosse o quadro geral da maioria das profissões relevantes da sociedade portuguesa. O espantoso neste voo sobre um ninho de doidos é que, perante a desvalorização da efetiva violência doméstica, as invocações bíblicas num Estado de direito democrático laico e estapafúrdia advertência escrita, se saiba agora que o juiz em causa já tinha pedido escusa de casos de violência doméstica, mas o Supremo Tribunal de Justiça não anuiu. Não anuir significa que é solidário com todo o potencial de substância e de forma do exercício do juiz Neto de Moura. Já não espanta, mas confirma a falência da capacidade de supervisão e de funcionamento sensato de uma instância de recurso.

Na banca, depois das proclamações do anterior e do atual governo de que os contribuintes portugueses não voltariam a ser chamados a injetar mais capital no Novo Banco, quase pela calada do Carnaval, a nação é confrontada com o recurso a mais 1149 milhões de euros do Fundo de Resolução. Ninguém explica o que mudou, ninguém assume responsabilidades, os responsáveis dos desmandos continuam nas suas vidinhas e o primeiro-ministro, um dos asseguradores de nem mais um tusto para a banca, vai promover o outro lado do político para “O Programa da Cristina”. Agora que alguns despertaram para as fake news deveriam também destinar alguma atenção às fake situations – é que são justamente estas que criam ambiente para os populismos, os sentimentos de injustiça e o ressurgimento de estados de alma que são nocivos à democracia, à liberdade e aos equilíbrios necessários em qualquer comunidade. Mas não: uma vez mais, quem tem responsabilidades políticas de liderança não dá a cara, não explica e remete para outros o ónus. É só líder para o bife do lombo; quando toca ao osso, alguém que o roa. Vai tocar a Centeno, que os modeladores de perceções nas redes já colocaram como o que enganou os portugueses. Complementando um dirigente do PS anónimo e anedótico que afirmou no “Expresso” de sábado que “António Costa não é como António José Seguro, está-se nas tintas para as guerrinhas das distritais”, pode dizer–se que se está também nas tintas para o dever de explicar ao país por que razão no Novo Banco a palavra dada não foi honrada. Os contribuintes não seriam chamados, mas vão ser. O quadro, apesar da leviandade da gestão política, é explosivo, em véspera de eleições – afinal, existem recursos negados a tantos setores, problemas e investimentos. É uma irresponsabilidade política sistémica que não exime a obrigação de ganhar por “muitochinhos” nas europeias e de vencer as legislativas com maioria absoluta.

Entretanto, o país sobressalta-se com os Netos de Moura, os milhões para a banca e um horizonte de contestação social cada vez mais consistente na educação, na saúde e em outros setores órfãos da mesma predisposição do Estado para decidir que banquemos.

De vez em quando, vale a pena pairar sobre o ninho de doidos. Incoerente, insustentável e tergiversante.

 

NOTAS FINAIS

Entrudo. Só pode ser Carnaval. Um governo que foi useiro e vezeiro em abusos das forças policiais e em desrespeito pelos direitos humanos querer que outro, de um Estado de direito democrático, apresente desculpas por incidentes em investigação.

Entrudo Chocalheiro. Alguns portistas construíram uma narrativa (dizem não ter cartilha) de regresso à normalidade. Um árbitro do Porto para o jogo, violação da legislação do ruído pela madrugada fora à beira do hotel dos jogadores do Benfica, pedradas no autocarro da equipa, uns burgessos a incitarem ao ódio, os insultos do costume produzidos pelas claques legalizadas e, depois da derrota, o treinador a revelar todo o esplendor da sua personalidade ao não cumprimentar um jogador do Sport Lisboa e Benfica. Uns caretos chocalheiros. Pelo meio, mais um árbitro inibido de contrariar a envolvente, um Pepe a lançar-se na carreira artística teatral e a certeza de que não haverá inclinação de campo que impeça a determinação de entrar para ganhar, lutar e ganhar. Carrega, Benfica!

 

Escreve à quinta-feira