Só estou bem com a cidade que não tenho


É impossível não recordar as queixas dos anos 90 sobre os muitos prédios degradados sempre que hoje ouço um lisboeta criticar que as obras dos últimos anos tiraram a mística à cidade


Vejo cada vez mais pessoas preocupadas com algumas consequências do turismo. Consequências que antes de existirem eram referidas nas mesmas conversas de café como situações desejáveis: centro das principais cidades cheio, uma remodelação do parque imobiliário e novas formas de circular – transportes individuais baratos e amigos do ambiente.

Sempre morei no centro de Lisboa e, há 15 ou 20 anos, os problemas da cidade eram muito diferentes daqueles de que hoje ouço falar por aí. Aliás, os problemas de hoje eram o que naquela altura se almejava. Ainda no início dos anos 2000, os mais velhos queixavam-se da falta de pessoas à noite nas ruas, do aumento dos assaltos e de um certo sentimento de insegurança em todas as ruas da Baixa.

Desde que Portugal entrou na moda, esses problemas desapareceram – as ruas estão cheias a qualquer hora do dia e à noite nunca se caminha sozinho por nenhuma rua, nem nas mais estreitas.

E se é certo que o aumento das rendas e o boom imobiliário estão a empurrar muitos lisboetas para fora – algo que precisa de um travão urgente –, também não deixa de ser verdade que, há uns anos, eram os próprios lisboetas que saíam para os subúrbios à procura de melhores condições, que Lisboa já não oferecia.

As queixas de que os centros comerciais tinham acabado com o comércio de rua, levando à falência pequenas empresas, eram também uma constante. A situação foi revertida e, hoje, o comércio de rua em Lisboa e no Porto existe e não está ameaçado pelas grandes superfícies.

É certo que algum desse comércio atual não é para os bolsos dos lisboetas, mas o que havia antes estava a morrer, as lojas não conseguiam manter-se.

Os motivos pelos quais os lisboetas se queixam hoje correspondem à realidade que tanto desejavam, de uma cidade que fervilhasse, agitada e com um comércio forte.

Não são os turistas que estão a mais – pode é discutir-se os segmentos em que se quer apostar –, é a paridade do poder de compra. Mas, muitas vezes, os assuntos baralham-se e atribui-se ao turismo a impossibilidade de se viver nos grandes centros urbanos, algo que já antes acontecia por outros motivos.

As trotinetas também têm sido alvo de muitas críticas, mas aliviaram o sistema de transportes públicos e abriram, juntamente com as bicicletas, outras portas. A cidade das sete colinas que todos os dias chorava o fado de não ser ciclável percebeu hoje que o pode ser, que estes meios são eficazes e funcionam para deslocações diárias ou de turismo.

Claro que é preciso garantir a segurança de todos e que as trotinetas não podem ser largadas em todos os cantos, mas daí a concluir que trouxeram o caos à cidade já me parece um exagero. Até porque se fosse possível avaliá-las com os olhos da Lisboa ou do Porto dos anos 90, de certeza que eram vistas com muito entusiasmo.

Não se pode dizer que este tipo de crítica é exclusiva dos portugueses, uma vez que noutros países acontece o mesmo – e com posições bem mais extremadas, como se verifica em Barcelona. Mas no caso de Lisboa assisti às conversas do antes e agora ouço as da atualidade. E é impossível não recordar as críticas aos prédios degradados sempre que ouço um lisboeta criticar que as obras dos últimos anos tiraram a mística à cidade. Devo fazer sempre a mesma cara de espanto.

O facto de achar que a cidade precisa do turismo não significa que não considere urgente a adoção de medidas para fixar lisboetas e portuenses. Mais: são precisas medidas eficazes e que tragam estabilidade a quem quer continuar a viver nos grandes centros urbanos, medidas que não sirvam apenas para calar os críticos e satisfazer os partidos mais à esquerda. O novo contrato de habitação vitalício, por exemplo, é uma não medida. Alguém acredita que um senhorio vai “vender” uma casa por uma geração a troco de 10% ou 20% do valor do imóvel? Vai ser interessante ver os números daqui por um ano.

 

Jornalista