No relógio batiam as três e quarenta e um, o mês de fevereiro estava a terminar e a aldeia de Fonte dos Louzeiros estava deserta – os poucos habitantes estavam todos a dormir a essa hora. Nesse momento, estávamos em 1969. E não foi só o chão a tremer, “tremeu até a cabeça das pessoas”, conta um dos habitantes da aldeia. À frente da fonte – o local mais central da aldeia – vivia a “senhora Maria”, uma viúva que não acordou com o sismo. O teto desabou e as duas vigas que seguravam o telhado caíram em cima da sua cama – uma de cada de lado – e Maria não teve sequer um arranhão. Esta é a história que vem à memória das poucas pessoas de Fonte Louzeiros que ainda ali vivem e viveram o momento em que um sismo de magnitude 7.5 na Escala de Richter abanou o país inteiro. Foi a 28 de fevereiro. O sul do país foi a zona mais afetada, sobretudo a aldeia de Fontes de Louzeiros, onde só sobrou uma casa – na altura não chegavam a 20.
Há 50 anos, a história de Maria era um milagre de Deus. “Agora sabemos que são coincidências, mas eram outros tempos, ela era uma pessoa muito religiosa e as pessoas ficaram perplexas”, conta Cidália, que na altura do sismo tinha apenas 13 anos, mas que se lembra como se fosse hoje. “Estava a dormir como toda a gente, e acordei com o barulho da casa a tremer”, diz. Saiu para a rua com os pais, “tudo conforme estava, de pijama”. A casa de Cidália começa onde a aldeia acaba e, por isso, só teve perceção “do tamanho da tragédia no dia seguinte, quando levantou o sol, porque na altura não chegavam jornais às aldeias”. Quando percorreu a reta que termina em Fonte de Louzeiros percebeu que tinha sobrado pouco – a casa da senhora Maria estava completamente destruída, assim como as outras, e nem a escola primária escapou.
Hoje, no lugar da escola primária está o café Falcão, mesmo à frente da fonte que marca o centro da aldeia. E é também o lugar onde todos se sentam à hora de almoço. Hoje está tudo reconstruído, mas os habitantes garantem que foi tudo feito graças ao dinheiro de cada um e não ao dinheiro do Estado.
Noite de pânico
O Sismo foi a manchete do “Diário de Lisboa” no dia seguinte ao sismo. “O país foi sacudido de madrugada por forte sismo”, contava o jornal da capital. O sismo sentiu-se no país inteiro e foi notícia durante as semanas que se seguiram. E, apesar de na aldeia de Louzeiros ser difícil o acesso a notícias, elas corriam depressa – de boca em boca. Foi assim que também a tragédia na aldeia de Bensafrim se espalhou.
Pelas ruas de Bensafrim, no dia 27 de fevereiro – um dia antes do sismo –, Maria Manuela já andava a pensar no casamento que seria em setembro de 1969. “Ainda era solteira e tinha 26 anos, mas lembro-me como se fosse hoje e todos os anos por esta altura me lembro”, conta. Agora com 76 anos, recorda alguns episódios que viveu naquela noite e pede ajuda às amigas que passam e que tem a certeza que se lembram do que aconteceu.
Em 1969, a aldeia de Bensafrim era metade do que é hoje, onde a maior parte das casas são relativamente recentes. Ainda assim, já era muito maior do que a aldeia de Fonte dos Louzeiros, por isso, as memórias são também mais. Maria Manuela sabe de cor as conversas e quem encontrou naquela noite. Acordou com a casa a abanar e pediu ajuda ao pai que a mandou para fora de casa. “Vim aqui para a rua de camisa de dormir e com as botinhas de lã”, começa Maria Manuela, enquanto vai apontando e aguarda a aprovação das amigas que já se juntaram à conversa. “Entretanto chegou-me um rapaz, que naquele tempo os homens também não vestiam pijama – eram só os boxers e a camisola – a pedir fósforos: ‘Ah vizinha dê-me aí fósforos que a minha mãe caiu ali no chão’. Porque na altura não havia luz elétrica”.
Uma das grandes preocupações durante o minuto interminável que durou o sismo foi proteger as crianças. Uma bebé de três meses estava fechada em casa com a mãe. “Dissemos-lhe para sair pela porta de trás com a menina e, quando ela saiu, a menina tinha terrinha nos olhos, então estivemos em casa da minha mãe a tirar a terra dos olhos da menina”, conta ainda Maria Manuela. Também em casa de Rosa Pereira, que acabou de celebrar os 80 anos, a prioridade foram as duas filhas. “À minha cabeceira rebentou a parede e eu tinha a minha filha pequenina e tapei-lhe a cabecinha a pensar que aquilo desabava tudo”, conta Rosa. A parede do quarto ficou destruída e com acesso direto para a casa da sogra, já que as paredes eram comuns. As habitações não eram o que são hoje e, geralmente, só havia um quarto, o dos pais – além disso, eram todas de pedra. A outra filha estava na sala, “num cantinho”. “Ai, filha, deixa-te estar aí amagadinha”, encenou Rosa como se tivesse voltado à noite de 28 de fevereiro.
Ninguém ficou ferido gravemente, nem se registaram mortos nas duas aldeias, mas uma das pessoas que viveu aquela noite e a guarda na memória “como se fosse hoje”, acrescenta: “Aqui ninguém se aleijou, eu ouço falar em 13 mortos, mas aqui não morreu ninguém”.
Depois do abanão não chegou a bonança
Na verdade, o sismo não durou apenas um minuto, durou vários anos. Durante os anos seguintes, as populações, sobretudo as que o i visitou – Bensafrim e Fonte dos Louzeiros –, tiveram de se amanhar, como se diz por estes lados. Para uns, a ajuda monetária para a reconstrução das casas nunca chegou e, para outros, chegou tarde. Na aldeia de Fonte dos Louzeiros, a casa em frente à fonte, aquela onde aconteceu o milagre, teve de ser reconstruída. Mas a habitação ganhou uma nova vida graças ao dinheiro dos proprietários – foi Mário Pedro, sogro de Maria, que reconstruiu a casa.
Na altura do sismo estava em Moçambique a trabalhar, era secretário, e teve conhecimento do que tinha acontecido na sua aldeia através da rádio Emissora Nacional. Assim que soube pediu licença para voltar a Portugal, onde ficou nove meses. “Quando cheguei já estava tudo destruído, a minha sogra que não morreu por sorte ficou com muito pouco”, conta Mário Pedro.
A população da pequena aldeia que ficou desalojada foi encaminhada para uns contentores de madeira construídos na época para o propósito. “Não houve ajuda para ninguém, cada um reconstruiu a sua própria casa”, garante Mário Pedro. A 30 quilómetros da aldeia caracterizada por ter aquela fonte no meio – os habitantes acham que foi das mais afetadas por causa do curso de água que por ali passa – uma das moradoras de Bensafrim também recorda “as casas de madeira improvisadas” em que ficaram os moradores. E diz mais: “Isso foi tal e qual como é agora, vieram dinheiros de fora, vieram dinheiros do Estado, e depois houve quem ficasse com as casas arranjadas e houve quem precisasse e não ficou. A minha não ficou e diziam que o dinheiro não foi bem distribuído”.
Enquanto houver pessoas para contar estas histórias, as memórias vão-se mantendo. Assim como se mantém o medo. O medo de viver um minuto como aquele. Num restaurante à entrada de Bensafrim está Maria Emília. “É uma das coisas que tenho mais medo”, conta, depois de recordar o episódio que a impediu de dormir durante meses. Tinha apenas quinze anos quando sentiu a terra tremer, mas vai ficar sempre com a recordação “tenha que idade tiver”. No entanto, há uma pessoa que não tem o medo da maioria dos que por ali vivem. Sentado no café Falcão, mesmo à frente da fonte, nos Louzeiros, Armindo Gonçalves garante: “Milagres? Com esta idade não acredito em milagres e se houver outro sismo já não devo estar cá para ver. Sabe, as histórias vão morrendo, é a natureza, é como um sismo”. Tem 82, já não se assusta com nada e continua a andar de bicicleta, como em 1969.