Crónica sobre política rasteira e de como se criam novas castas por ajuste directo


Para Costa, tanto a polícia, os ataques e os habitantes do Jamaica como os seus problemas específicos e tensões, ou a segurança pública, são um incómodo demasiado banal e irrelevante relativamente ao problema que só ele intui e entendeu proclamar da eventual questão da cor da sua pele


Nestes últimos dias, o enorme ruído à volta do tema do racismo serviu, mediaticamente, de cortina de fumo que tapou um fenómeno congénito da nossa democracia e que é um outro fenómeno de exclusão muito menos evidente.

Também este, por sub-reptício, informalmente institucionalizado e pago com o dinheiro de todos, em benefício de alguns poucos, merecia ampla e generalizada discussão e séria responsabilização, e muito mais mediatização responsável.

Perdeu-se muito tempo, não sem alguma razão, a acordar da espantosa conclusão que António Costa conseguiu retirar de uma interpelação sobre segurança pública.

É difícil perceber, a menos que encerre um problema próprio de inexplicável vergonha das suas origens de cidadão português nascido no Estado Português da Índia, de que forma é que este cidadão, nascido em Goa, licenciado numa universidade portuguesa, ex-ministro, ex-autarca, e bem sei que não eleito directamente mas actual primeiro-ministro, confrontado pela oposição no parlamento – local onde o governo deve prestar contas da sua actuação – com uma espiral de actos de violência contra as forças policiais que o seu governo devia tutelar, mas obviamente não tutela, entende que tal interpelação substantivamente exemplificada com inúmeras notícias de jornal só poderá ter por motivação a cor da sua pele.

Todos os luso-africanos que habitam os bairros da Jamaica deste país, e que curiosamente não nasceram em Goa, e a quem sucessivas vereações do PCP não resolveram o problema da habitação, mas não só, ainda devem estar boquiabertos com esta referência ao tom da pele e ao alegado processo de marginalização de que o seu dono estaria a ser, alegadamente, vítima.

Em 1963, um dos mais importantes estadistas do século passado, J. F. Kennedy (reconheço que a comparação com Costa é, no mínimo improvável), confrontado com a divisão que os comunistas fizeram à cidade de Berlim, com a construção do tal muro que condenou Berlim Oriental, ou de Leste, a várias décadas da miséria do socialismo real, proferiu em defesa da liberdade individual o seguinte discurso histórico: “Há dois mil anos, não havia frase que se dissesse com mais orgulho do que ‘civis Romanum sum’. Hoje, no mundo da liberdade, não há frase que se diga com mais orgulho que ‘Ich bin ein Berliner’… Todos os homens livres, onde quer que vivam, são cidadãos de Berlim, e, portanto, como um homem livre, eu orgulho-me das palavras ‘Ich bin ein Berliner’.”

A grandiosidade dos homens políticos de excepção fazem-nos, na adversidade, ter gestos grandíloquos e humanos. Enquanto a famosa Cortina de Ferro – de que são herdeiros morais os compagnons de route da geringonça – caía sobre a Europa, Kennedy exaltou a liberdade em defesa dos sitiados e disse-se um deles.

Costa, cuja relação com o Bairro da Jamaica não passa de um delírio recalcado, igual a si sempre que a conjuntura lhe falha, ofereceu-nos antes, e sem vergonha, mais este episódio trágico e amoral ao invocar perante um rol extenso de acontecimentos fomentados, também, pelos seus parceiros dilectos, estar a ser vítima na interpelação política que lhe foi feita, não do contexto enquanto PM e primeiro responsável pelo governo, mas da cor da sua pele. Bem andou Cristas ao falar em vergonha alheia que abençoadamente não mata ou teriam caído muitos fulminados por tamanha alarvidade.

Para Costa, tanto a polícia, os ataques e os habitantes do Jamaica como os seus problemas específicos e tensões, ou a segurança pública, são um incómodo demasiado banal e irrelevante relativamente ao problema que só ele intui e entendeu proclamar da eventual questão da cor da sua pele. Noutras ocasiões diagnosticar-se-ia distúrbio paranóico…

Acontece que entre a exclusão real dos bairros da Jamaica e a exclusão algo alucinogénica de que o PM se queixa, e que este episódio subalternizou, existe uma outra, a exclusão generalizada dos não ungidos do bodo dos orçamentos públicos, das assessorias políticas, dos ajustes directos e das negociatas dos decisores políticos, e dos afastados destas esferas de influência.

Os vários outros fenómenos da semana, dos ajustes directos, do assalto político à banca e da corrupção demonstram-nos também que o nepotismo do sistema é, ele próprio, um outro importante factor de exclusão social.

É que também, ainda dentro das franjas que definem os limites da marginalidade social, há todo um universo de oportunidades e rendimentos onde não há permeabilidade nem acesso e onde existem outras exclusões.

Consulte-se a base de dados base.gov e estarreça-se com os exemplos da líder de juventude política de currículo academicamente fluido que recebeu em ajustes directos, desde 2014, com contratos registados (não necessariamente concluídos) até esta data, da freguesia de Benfica €46.800,00 e do município de Lisboa €76.004,68 mais €180.745,40.

Acrescente-se-lhe e multiplique-se pelos demais: genros dos secretários-gerais da vida; activistas anti-racismo e antipolícia, a soldo do Bloco de Esquerda e outros; ou as empresas das ministras, segundo o “Correio da Manhã”; e os muitos mais dos vários partidos que têm acesso ao poder – e perceba-se que há uma enorme fatia da liberdade económica que está refém da coisa política e que, por ajuste directo, anda a distribuir o dinheiro dos muitos anónimos pelos costumados e conhecidos poucos.

Junte-se-lhe o relatório preliminar da auditoria à CGD e os relatórios sobre a escalada de Portugal, no pior sentido, nas listas da corrupção mundial e nos relatórios da OCDE, e começa a ter-se a face desta outra exclusão, que é a exclusão dos habitantes de um país periférico, pobre e sobre-hipotecado pela dívida, de um futuro qualquer que não seja ser vítima do esbulho fiscal para pagar às clientelas.

Na origem dos racismos há sempre uma motivação económica que engloba normalmente o objectivo de defender as características e privilégios de um determinado grupo. O nepotismo partidário sobre a economia e a distribuição de prebendas nesse exacto contexto são óbvios sinais de um “racismo” diferente, mas efectivo e igualmente repugnante, sem cor de pele e sem guetos, mas que serve para alimentar e perpetuar as suas castas!

Advogado na norma8advogados

pf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990