A muralha da China de Trump

A muralha da China de Trump


Será que o muro na fronteira entre os EUA e o México vai travar o fluxo migratório e o tráfico de droga? A história da vedação diz que não


Foi com a promessa tantas vezes repetida na campanha eleitoral de construir um muro na fronteira com o México que Donald Trump chegou à Casa Branca. Um muro grande, alto, bonito e de betão, como se fosse a Muralha da China do século XXI, prometeu vezes sem conta. Os apoiantes aplaudiram a ideia e os críticos acusaram-no de insistir numa falsa solução, mas Trump não dá sinais de abdicar, criando uma narrativa de medo e pânico para legitimar a construção do muro. Mas será que faz sentido para resolver a “crise humanitária e de segurança” que o líder da Casa Branca diz estar a acontecer no sul do país? Entre os apoiantes de Trump e quem vive na fronteira, há uma grande diferença de opinião. E a realidade é bem diferente daquela que Trump transmite nos seus discursos, tweets e políticas.

“Temos esse problema de as pessoas atravessarem a fronteira ilegalmente – e isso será sempre um desafio -, mas considerá-la uma crise e pensar que um muro vai resolver o problema, isso é uma ilusão, um sonho fantasioso”, critica Tony Estrada, xerife do condado de Santa Cruz, no Arizona, em entrevista à rádio WBUR. “A não ser que se ponha um muro nos postos fronteiriços e não se deixe ninguém passar”, se conseguirá travar o fluxo ilegal de pessoas e bens. “Claro que tudo morreria nos dois lados da fronteira”, se isso acontecesse, garante o xerife que há mais de 26 anos patrulha as estradas do condado, explicando que “é uma tentativa ridícula tentar convencer as pessoas de que [o muro] vai travar a entrada de drogas nos EUA”. 

Opinião partilhada pelo congressista republicano Will Hurd, do Texas, que considera que “a construção de um muro de betão de mar a mar é a solução mais cara e menos eficaz de garantir a segurança da fronteira”. A história da vedação mostra que conseguiu dificultar a passagem fronteiriça, mas não travou os fluxos ilegais, que encontraram novas rotas. 

Uma sondagem do Pew Research Center de 2017 concluiu que os norte-americanos que vivem a uma distância de até 560 quilómetros da fronteira, os que estão na linha da frente da dita “crise humanitária e de segurança”, são os que menos apoiam a ideia de se construir um muro na fronteira com o México. Os fervorosos apoiantes desta muralha do século XXI vivem na sua grande maioria nos Estados mais a norte.

Há muito que a fronteira dos Estados Unidos com o México, definitivamente delineada em 1848, é tema na agenda política em Washington. Até bem depois da II Guerra Mundial as únicas barreiras físicas que se podiam ver no horizonte eram cercas para impedir que o gado mexicano entrasse nos campos norte-americanos. Tudo mudou com o aumento do tráfico de droga e a imigração a partir de finais dos anos 1970. 

As primeiras vedações começaram a ser construídas em zonas urbanas, em San Diego e El Paso, por os agentes da Patrulha de Fronteira terem dificuldade em deter quem tentava passar a fronteira. E desde aí que se estenderam ao longo da fronteira. 

O presidente Bill Clinton foi o primeiro a dedicar mais atenção à fronteira, ao mandar construir quilómetros de vedações, ao mesmo tempo que deu mais poderes às agências federais que vigiam a fronteira. “Depois de anos de negligência, esta administração tomou uma posição dura para aumentar a proteção da nossa fronteira”, declarou Clinton em 1996. 

O tráfico de droga não parou e nos mandatos de George W. Bush e Barack Obama mais quilómetros de vedação foram erguidos. Há mais de 20 anos que esta é consecutivamente reforçada. Antes de Trump ter tomado posse, 97% da vedação, numa extensão de mais de 1050 quilómetros, tinha sido construída pelos três últimos presidentes, dois democratas e um republicano. O resto da fronteira tem montanhas e um rio a separar os dois países. Como se a vedação já não fosse obstáculo suficiente, uma segunda linha, com 37 quilómetros, foi erguida, obrigando quem a quer atravessar ao dobro do esforço. Agora, com o muro, Trump espera dissuadir os imigrantes de tentarem a sua sorte e encaminhar o fluxo humano que não ceda para locais chave, onde os agentes federais podem atuar sobre alvos concentrados – é a teoria do “ponto de estrangulamento”. 

Além disso, a fronteira foi altamente militarizada, com os agentes a receberem equipamento e sistemas de vigilância usados em teatros de guerra, como no Iraque e Afeganistão. O orçamento da Patrulha de Fronteira foi exponencialmente aumentado para equipar os seus agentes com o melhor material disponível na indústria de defesa. Trump reforçou esta tendência ao destacar cinco mil soldados para a fronteira. E, se fossem necessários mais reforços, milícias de extrema-direita dirigiram-se para a fronteira para “caçarem” os imigrantes que a conseguissem atravessar.  

Uma vedação e um muro estão destinados a desempenhar, na sua essência, a mesma função: impedir a passagem por terra do tráfico, seja humano, seja de drogas. E não tem resultado. Os cartéis de droga sempre arranjaram formas inovadoras para contornarem o gradeamento, construindo túneis ou usando drones para transportarem a droga por cima das barreiras físicas. E, curiosamente, a grande maioria da droga que passa do México para os EUA por via terrestre usa os postos fronteiriços, escondidos em veículos. O impacto de um muro será pouco ou nenhum. 

Os cada vez mais pequenos túneis de passagem de drogas chegam a estar numa profundidade superior a 25 metros, dificultando a sua detenção pelas autoridades. Têm as paredes em betão e iluminação e podem custar mais de um milhão de dólares. Em 2005, por exemplo, as autoridades norte-americanas encontraram quatro túneis, demolindo-os, mas pouco depois surgiram outros. Um dos túneis tinha inclusive elevador. A perda dos túneis é irrisória para os cartéis, pois basta um carregamento de droga para compensar a sua perda. 

E, por cima da vedação, como aconteceria com um muro, a situação também não é melhor. Os traficantes começaram a usar drones – que custam pouco mais de 100 euros – para transportarem droga. Conseguem fazer com que um quilo de cocaína avance pelos céus, trazendo-lhes um lucro de dezenas de milhares de euros. O primeiro drone a ser capturado por agentes da Patrulha da Fronteira aconteceu em agosto de 2017 e carregava 5,5 quilos de metanfetaminas. Até o conseguirem deter, os agentes detetaram pelo menos quatro com voos bem sucedidos.

É difícil saber-se quantas pessoas conseguiram passar a fronteira sem serem detetadas, sendo que o indicador mais próximo é o número de detenções. A imigração é apresentada por Trump como a grande ameaça ao estilo de vida norte-americano, mas a verdade é que o fluxo migratório tem-se vindo a reduzir nos últimos anos. Em 2018 atingiu o segundo valor mais baixo desde 2000, o valor mais alto desse fluxo (mais de 1,6 milhões de pessoas): 396 mil pessoas detidas pelos agentes de fronteira e, no ano anterior, atingiu níveis historicamente reduzidos, semelhantes ao de 1971. A caracterização dos imigrantes também é bem diferente da que é dada pelo presidente norte-americano: a grande maioria são mulheres e crianças, por vezes acompanhadas por homens. A ideia do imigrante masculino a viajar sozinho não é a mais fidedigna. 

Além disso, muitos dos referidos imigrantes não tentam entrar nos EUA ilegalmente, dirigindo-se, ao invés, diretamente aos agentes federais para solicitarem asilo nos Estados Unidos. Fazem-no não na vedação, mas nos postos fronteiriços legais – a teoria do “ponto de estrangulamento”, usado para concentrar as pessoas em menos pontos de passagem, de modo a serem mais fáceis de controlar. Os centros de acolhimento são insuficientes e, muitas das vezes, os imigrantes são abandonados ao seu destino enquanto esperam uma resposta, que pode demorar muitas semanas. Trump não os consegue deportar à velocidade desejada e nem os pode deter muito tempo por causa da proteção extrajudicial que detêm – convenções e acordos internacionais -, e esse problema não vai desaparecer com o muro.