Me liga, vai!


O ano de 2019 começou com um registo esquisito, diferente, por vezes a raiar o absurdo, mas é o que temos e a tendência, em vertigem eleitoral, é para não melhorar


Silly season o ano inteiro é uma animação. Já houve “o carteiro toca sempre duas vezes”, o “não vá, telefone”, depois o “contacte-nos online” e agora podemos ficar civicamente impávidos e serenos que podemos ser contactados pelas mais altas figuras do Estado. Em boa parte, já o somos no que respeita aos impostos e às obrigações, raramente em relação aos direitos ou às oportunidades.

O país, que exultou de consumismo natalício e de ano novo, anda nervoso, vibrante e estremecido com ocorrências mediáticas diversas que sublinham novos tempos. Proximidades sem critério, indignações sem senso e sucessivos sobressaltos digitais que cumprem os objetivos dos promotores. Mais forma que conteúdo, mais espuma que onda, mais entretenimento que reflexão, enquanto à margem se esgueira uma realidade que acumula passivos, indiferenças e adiamentos.

O que o novo tempo projeta como humanização, proximidade e simplificação do exercício político não supera um qualquer teste de aferição do senso, dos critérios de relacionamento entre eleitos e eleitores ou de um sentido de sustentabilidade. Ou alguém acredita que o registo num contexto geral positivo é sustentável quando as circunstâncias ou a conjuntura forem desfavoráveis?

Voláteis, superficiais e descartáveis, as narrativas e as ações políticas acompanham os ritmos de um tempo acelerado que encerra um amplo conjunto de contradições, incoerências e encruzilhadas insanáveis. É o resultado de uma certa forma de fazer política que agrada a alguns, sobretudo enquanto tiverem mais uns cobres nos bolsos.

Como compatibilizar a narrativa de valorização do Serviço Nacional de Saúde com o agravamento da dívida a fornecedores e credores, que totalizou 2,9 mil milhões de euros em 2017, o que representa um agravamento de cerca de 52% face a 2014?

Como compatibilizar as pretensões dos professores em relação ao resgate do tempo de serviço não contabilizado com as disponibilidades financeiras do país e com as reivindicações de outras classes profissionais relevantes para as funções centrais do Estado?

Como compatibilizar a aposta na reposição de rendimentos e de direitos à função pública com a simultaneidade de medidas que contrariam essa opção política, por exemplo, no acesso dos beneficiários da ADSE a cuidados de saúde de prestadores privados?

Qualquer acréscimo de exigência política e cívica implicaria um sobressalto nacional de replicados “me liga, vai”, direcionados ao Presidente da República para que se inteirasse das incoerências, discriminações e passivos que vão sendo permitidos em diversas latitudes e longitudes do território nacional, mas o momento é sobretudo de espetáculo. Simbolismo, mediatização e impulsos disruptivos sem nexo. É o povo gosta, é o que se faz enquanto se pode. 

O ano de 2019 começou com um registo esquisito, diferente, por vezes a raiar o absurdo, mas é o que temos e a tendência, em vertigem eleitoral, é para não melhorar. Um ano político intenso em que a quadratura do círculo vai ser tentada. 

A oposição defende o contrário do que fez quando esteve no poder, quando foi mais longe que a austeridade negociada com a troika e mais fundo do que o necessário nas privatizações. 

O poder tenta resgatar para a quinta própria um quinhão de resultados conseguidos no contexto da observância formal dos compromissos internacionais do país. Aliás, será delicioso assistir ao exercício político do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português para reclamar louros de resultados obtidos no quadro do cumprimento das obrigações europeias.

Na sociedade prolifera um certo justicialismo enformado na superficialidade geral que, nas instituições e nas redes sociais, não hesita em condenar sem fazer o adequado trabalho prévio de avaliação dos fundamentos da acusação, numa espiral de degradação do ambiente social e da segurança no papel do Estado de direito que coloca em causa padrões mínimos de desenvolvimento civilizacional. Quando a regra é o vale-tudo, não se sabe com que regras se pode contar. Na política como na sociedade, é muito assim que andamos. Com a cabeça entre as orelhas, à espera de telefonemas e de afetos. Na Roma Antiga, era pão e circo. A long time ago. Anda esquisito o país e tem responsáveis.

NOTAS FINAIS
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
                                                Bertolt Brecht

 

Andamos assim no cibercrime organizado em Portugal, com advogados de hackers que assumem a representação de clubes em programas de televisão, com ataques informáticos a escritórios de advogados e com a comezinha serenidade dos poderes instalados, conformados com a evidente realidade condicionada para o erro, sempre no mesmo sentido. Multiplicam-se os ataques orientados a pilares do Estado de direito democrático. Até ao dia em que tocará às mais altas esferas do Estado português. Será tarde demais. Será da vida! Mal!

 

Escreve à quinta-feira
 


Me liga, vai!


O ano de 2019 começou com um registo esquisito, diferente, por vezes a raiar o absurdo, mas é o que temos e a tendência, em vertigem eleitoral, é para não melhorar


Silly season o ano inteiro é uma animação. Já houve “o carteiro toca sempre duas vezes”, o “não vá, telefone”, depois o “contacte-nos online” e agora podemos ficar civicamente impávidos e serenos que podemos ser contactados pelas mais altas figuras do Estado. Em boa parte, já o somos no que respeita aos impostos e às obrigações, raramente em relação aos direitos ou às oportunidades.

O país, que exultou de consumismo natalício e de ano novo, anda nervoso, vibrante e estremecido com ocorrências mediáticas diversas que sublinham novos tempos. Proximidades sem critério, indignações sem senso e sucessivos sobressaltos digitais que cumprem os objetivos dos promotores. Mais forma que conteúdo, mais espuma que onda, mais entretenimento que reflexão, enquanto à margem se esgueira uma realidade que acumula passivos, indiferenças e adiamentos.

O que o novo tempo projeta como humanização, proximidade e simplificação do exercício político não supera um qualquer teste de aferição do senso, dos critérios de relacionamento entre eleitos e eleitores ou de um sentido de sustentabilidade. Ou alguém acredita que o registo num contexto geral positivo é sustentável quando as circunstâncias ou a conjuntura forem desfavoráveis?

Voláteis, superficiais e descartáveis, as narrativas e as ações políticas acompanham os ritmos de um tempo acelerado que encerra um amplo conjunto de contradições, incoerências e encruzilhadas insanáveis. É o resultado de uma certa forma de fazer política que agrada a alguns, sobretudo enquanto tiverem mais uns cobres nos bolsos.

Como compatibilizar a narrativa de valorização do Serviço Nacional de Saúde com o agravamento da dívida a fornecedores e credores, que totalizou 2,9 mil milhões de euros em 2017, o que representa um agravamento de cerca de 52% face a 2014?

Como compatibilizar as pretensões dos professores em relação ao resgate do tempo de serviço não contabilizado com as disponibilidades financeiras do país e com as reivindicações de outras classes profissionais relevantes para as funções centrais do Estado?

Como compatibilizar a aposta na reposição de rendimentos e de direitos à função pública com a simultaneidade de medidas que contrariam essa opção política, por exemplo, no acesso dos beneficiários da ADSE a cuidados de saúde de prestadores privados?

Qualquer acréscimo de exigência política e cívica implicaria um sobressalto nacional de replicados “me liga, vai”, direcionados ao Presidente da República para que se inteirasse das incoerências, discriminações e passivos que vão sendo permitidos em diversas latitudes e longitudes do território nacional, mas o momento é sobretudo de espetáculo. Simbolismo, mediatização e impulsos disruptivos sem nexo. É o povo gosta, é o que se faz enquanto se pode. 

O ano de 2019 começou com um registo esquisito, diferente, por vezes a raiar o absurdo, mas é o que temos e a tendência, em vertigem eleitoral, é para não melhorar. Um ano político intenso em que a quadratura do círculo vai ser tentada. 

A oposição defende o contrário do que fez quando esteve no poder, quando foi mais longe que a austeridade negociada com a troika e mais fundo do que o necessário nas privatizações. 

O poder tenta resgatar para a quinta própria um quinhão de resultados conseguidos no contexto da observância formal dos compromissos internacionais do país. Aliás, será delicioso assistir ao exercício político do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português para reclamar louros de resultados obtidos no quadro do cumprimento das obrigações europeias.

Na sociedade prolifera um certo justicialismo enformado na superficialidade geral que, nas instituições e nas redes sociais, não hesita em condenar sem fazer o adequado trabalho prévio de avaliação dos fundamentos da acusação, numa espiral de degradação do ambiente social e da segurança no papel do Estado de direito que coloca em causa padrões mínimos de desenvolvimento civilizacional. Quando a regra é o vale-tudo, não se sabe com que regras se pode contar. Na política como na sociedade, é muito assim que andamos. Com a cabeça entre as orelhas, à espera de telefonemas e de afetos. Na Roma Antiga, era pão e circo. A long time ago. Anda esquisito o país e tem responsáveis.

NOTAS FINAIS
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
                                                Bertolt Brecht

 

Andamos assim no cibercrime organizado em Portugal, com advogados de hackers que assumem a representação de clubes em programas de televisão, com ataques informáticos a escritórios de advogados e com a comezinha serenidade dos poderes instalados, conformados com a evidente realidade condicionada para o erro, sempre no mesmo sentido. Multiplicam-se os ataques orientados a pilares do Estado de direito democrático. Até ao dia em que tocará às mais altas esferas do Estado português. Será tarde demais. Será da vida! Mal!

 

Escreve à quinta-feira