Miguel Filipe Mochila. A luz em que o ínfimo faz sombra de colosso

Miguel Filipe Mochila. A luz em que o ínfimo faz sombra de colosso


Num livro em que a paixão tem marcas por todo o lado, Mochila deixa os tijolos que a poesia, hoje, se prescreve e lança-se numa jornada a um “musicável mundo novo”


Nada se tornou tão necessário quanto a invenção de novos começos, verdadeiros impulsos que exumem do poeirento desterro dos dicionários os pregnantes termos que melhor honram a luz matutina deste mundo. E que com eles se refortaleçam as imagens que, mesmo inseguramente, possam recriar o encantamento de algo que desponta, ainda que de forma miúda, como essa manhã que, nas primeiras páginas do livro de que vamos falar, desaba “sobre as grandes flores fulvas do linho, desbotadas”, e nos afaste dos “sentimentos de fim” ou do “fascínio pelo ocaso” (Steiner), para retomarmos a ânsia dos despertares.

E seguindo este fio damos com aquele esplendoroso verso de Eugénio falando-nos de um “amanhecer de pássaros no sangue”, essa sensação em que nasce a alegria. Isso basta para sinalizar uma oposição a um tempo em que “a coragem ficou tão cansada, e a nostalgia tão grande. Já não há mais montanhas, quase nem uma árvore. Nada ousa despertar”. E é de Rilke este começo, numa recente tradução de Bruno C. Duarte, (“A Balada de Amor e Morte do Porta-estandarte Christoph Rilke”). Mas, se lhe aproveitamos o balanço, iremos falar da alegria que nos surge como um hino nas páginas de “Com a Língua nos Dentes”, a de “um grito apertado nos dentes”, que Miguel Filipe Mochila retoma ao seu jeito, no seu segundo livro de poemas, e uma vez mais com o selo da Artefacto.

Sem se pôr de guarda a uma firme linha de sucessão, aqui, entre os dentes e a língua, há embalo e amparo, fluência e corte, razão rítmica, impulso e abandono, do hausto ao sopro, até essas coisas que zunem ou descansam arfando a “um ouvido da terra”. Já Miguel, ao pôr-se a interpretar os caprichos da luz, arrancando do mundo “analogias vasculares”, desenha o gesto rítmico e a trepidação de um comboio que fosse por cima da língua, cicatrizando-a, repercutindo “tremores, tambores na noite bárbara”. Este é um livro não tão admirável que envergue alguma “máscara de mármore” (Rilke, outra vez), mas antes um desamparo maravilhosamente empolgante. Mochila, calejado de levar e trazer o cântaro entre as fontes, emerge e chega quase a pavonear-se, como o abelhão no célebre poema de Zbigniew Herbert, protagonizando a imagem que nos ofereceu “sobre a tradução de poesia”. Mas aqui, além do amarelo do pólen no seu nariz, ele espirra e vulnera a pauta, produz uma tão sensível ilusão nas coisas vistas… “Porque eu venho de cima ou de baixo/ espirro de sítio em sítio existo em estado de sítio/ no limbo portenho num cacilheiro que arfa/ entre os pastiçais da Melanésia/ ou na lapela de um pastor mascando o cravo/ mordendo os dedos feridos pela espera/ venho de antes e depois e é imperioso/ reter esta luz, sentar-me nela/ antes que escorra como o sumo aguado no mirrar do fruto/ antes que seja toda arvorada pelos veios/ dessa amêndoa torrada/ tão baça/ antes que a flor doa de uma enfermidade fétida/ e eu fite no teu fundo/ a fosca fissura do caos/ a perfeição do mundo”.

Deparamo-nos, nestas páginas, com uma saborosa expansão do idioma, o que o torna vasto como um recreio, largando sombras numa corrida à luz de quantos sóis o poeta sabe armar, e é-nos dado, assim, um espantoso contraponto face às curtas vistas que temos visto lacrimejadas por esses “olhos embrutecidos pelo ramerrão do autocarro”. De resto, a imagem do autocarro no trajeto de um bocejo ao cinismo é a mais fidedigna para muito do que tem sido feito na poesia portuguesa nestas duas primeiras décadas: as de um século que, com todo o seu futuro, desesperada vertigem, ao passado só regressa para efeitos de turismo. Mas eis-nos, felizmente, diante de outra solução, a de um artífice do reencantamento que nos apresenta aqui a sua tão vitalista iniciação a um “musicável mundo novo”, num destemido corpo a corpo com a língua, e num livro que, nos seus momentos mais altos, é uma verdadeira festa para os sentidos, nutrida de um “infindável fôlego” que não se fica remirando o próprio reflexo, narcisicamente, mas deixa muito que ver na sua distribuição musical de perceções e vivências. Um encavalitamento bem expressivo da paixão que a poesia rebusca tentando fixá-la, nomeadamente, na profusão dos seus estímulos, desde a ortografia ao som, e que poucas vezes, entre nós, tem merecido uma tão efusiva quanto concertada elaboração. “Laura,/ estive a traduzir a noite toda/ e cheguei a algumas conclusões sobre a língua/ e quem diz a língua diz: as pessoas, o mundo,/ todas as coisas que não são quase nada a não ser isso:/ ligadas, linguadas (…) Sei isto porque estou sempre a declinar-te/ em todas as pessoas em todos os tempos/ por exemplo: Laura, a da flor do loureiro, a do louro/ ao lume a alourar/ e isto, na cozinha mediterrânica, é já um verbo/ de movimento e som e cheiro/ (não ouves o alho a marulhar, não sentes/ do refogado o olor a azeite e salsa?)/ – como outros por que nós cá nos regemos”.

E veja-se como este poema se corresponde com aquele de Rilke, em “O Livro das Imagens”, que traduziu Maria João Costa Pereira: “Eu queria cantar para dentro de alguém,/ sentar-me junto de alguém e estar aí./ Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente/ e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres./ Queria ser o único na casa/ a saber: a noite estava fria./ E queria escutar dentro e fora/ de ti, do mundo, da floresta./ Os relógios chamam-se anunciando as horas/ e vê-se o fundo do tempo (…)”

Porque as grandes inflexões geracionais decorrem muitas vezes de questões íntimas, e os grande achados são feitos ao "rés das águas" com uma rede que segue incertamente, perseguindo algo que se move na escuridão, enquanto os olhos a ela se habituam, recuperando o curso daquilo que persiste através dos tempos, apesar da vozearia, como um rio, passando por indevassáveis sepulcros, e cujo som nos recorda o gosto das origens, essa dadivosa “boca de fonte”, “boca de puro idioma unido, inesgotável”.

Não se espere deste exercício de leitura uma terrível objetividade. Cada coisa a seu tempo; deve haver margem para respirar quando uma corrente subterrânea encontra o seu caminho até à superfície. E haverá, de resto, muito quem esteja sempre disponível para os desdéns que se movem num aplicado silêncio. Podíamos, é claro, apontar–lhe debilidades, alguns deslizes ou excessos que tem todo o discurso que, sem grandes cerimónias, não deixe de gozar bem as suas irresponsabilidades, restituindo a poesia a um sentido de plenitude que se coloca, sem reservas, do lado da exuberância. Mas que isto não se confunda com a jactância das torneiras que devem o seu fluxo à marcha imparável das referências, num deslassado modo de palrar sobre tudo e nada, num bacoco enaltecimento de uma tão leviana época.

É notável também como o poeta, que se estreou com “Tempo da impaciência” (2016), nos surge não propriamente irreconhecível, mas com um vigor que mostra porque tantos dos nossos maiores poetas se acabam tão velhos a dar-nos as imagens mais exatas que já lemos da extrema inquietação e mágico deslumbramento próprios da juventude. “Convir-me-ia saber qual o nome/ que se dá àquelas estrelas pequeninas/ palitadas de filamentos brancos/ todas/ quase transparentes/ veios de baba/ por um anjo que tecesse a teia à volta/ de um nó quase coração/ bolçadas/ com perdão pela imagem (mas é exacta)/ que logo deram quem sabe no soalheiro génesis/ lugar a essas pequeninas estrelas/ que a primavera exsuda/ das copas de uma árvore cujo nome também ignoro (…) E é difícil – já disse – escrever um poema quando não/ sabemos tantas coisas/ percorrer com estes dedos ímpios/ vergonhosamente infectos de não-trabalho/ dedos que se mirram nos lavores e perguntam um tanto tímidos/ se podemos aventar coisas como “os quais” a encabeçar o verso/ sem soarmos ridículos/ enfim/ com estes dedos mesquinhos e perfeitamente mansos/ percorrer o sonolento fausto dos dicionários/ que vivem com os cornos enterrados em milhões de anos”.

O que tem de mais característico este tempo é a busca do novo nessa qualidade que Paul Valéry definia como própria de "um veneno excitante que acaba por se tornar mais necessário do que qualquer outro, daqueles venenos que, ao se apropriarem de nós, aumentar-se-á gradualmente a dose para torná-la mortal". Saciam-se do efémero precisamente os homens que já não vêem em si mesmos a nobreza do que têm em comum com a eternidade, e vinculam-se perdidamente "às partes mortais das coisas", essas que retêm por alguns instantes o brilho da novidade. O despudor deste livro está na forma como celebra a sua insuficiência, se volta de forma tão ávida para a poesia como uma tradição das coisas que "amadureceram calmamente", confrontando as experiências de tudo o que tem a perder com o que os séculos tomaram da intimidade dos homens. A sua confiança é a de quem está voltado para um norte além do próprio futuro. Pouco interessado em discutir o que pode ou não pode um poema, vai por ali, como se bastasse ter entre os lábios uma momentosa frase para deter a vida, revistá-la, sentir "o coaxar da saliva a marulhar/ a golpes de uma sede antiga". Tirar do ínfimo essa impressão colossal: "a tua sombra grande/ quase até cobrir o mundo, quero dizer, estes lençóis,/ a madeira do soalho, a fresta, a festa/ da porta para o banho, entreaberta…"