Foi aprovada em conselho de ministros a proposta do governo para rever a Lei de Bases da Saúde. Depois de virem a público alguns ajustes face à proposta desenhada pela comissão liderada por Maria de Belém Roseira – lidos no setor como uma viragem à esquerda por parte do governo – está fechado o diploma do executivo. Numa apresentação esta manhã aos jornalistas, a ministra da Saúde destacou as principais mudanças no espírito da lei que regula a prestação de cuidados de saúde à população e que não é alterada há 28 anos. A proposta de diploma do executivo determina que a gestão dos estabelecimentos do SNS é prioritariamente pública e abre caminho à criação de mecanismos que levem os profissionais de saúde a trabalhar em exclusividade no Estado.
Embora não acabem as PPPs, como pedem os partidos à esquerda, o governo alinha na ideia de que o recurso ao privado ou ao setor social deve ser sempre “supletivo” e temporário. Ou seja, só quando não exista alternativa e haja vantagens para o Estado. A porta do SNS ao privado fecha um bocadinho ou continua aberta? Para a ministra, a resposta à pergunta é que agora há uma porta. “O diploma diz que há uma porta e que essa porta é para ser respeitada. E não é para entrar quando está fechada, pelo menos sem bater.”
O que muda na prática?
Por agora o diploma segue para apreciação na Assembleia da República. Se o governo conseguir reunir o apoio dos partidos à esquerda, que insistem no fim das PPP mas também na isenção de taxas moderadoras, os trabalhos poderão ser mais rápidos. Mas a ministra não descarta que, em última instância, a revisão da lei pode não ficar fechada esta legislatura.
O Bloco de Esquerda antecipou-se e apresentou a sua proposta de lei em junho, com base no trabalho de António Arnaut e João Semedo, mas ainda não a levou a votação, na expectativa de um consenso. Na proposta do BE, os serviços do Estado também têm obrigatoriamente gestão pública, mas o privado continua a poder ser chamado de forma supletiva, palavra usada também pelo governo para descrever esta relação entre prestadores de cuidados de saúde.
De resto, Marta Temido explicou que o objetivo de uma Lei de Bases da Saúde é ser abrangente e servir de referencial, pelo que muitas das consequências práticas desta revisão terão de resultar de futuros diplomas. Será o caso de possíveis mudanças na cobrança de taxas moderadoras. No diploma do governo mantém-se a ideia de que o SNS é tendencialmente gratuito e que existem taxas com o intuito de moderar a procura, mas a ministra admitiu que pode fazer sentido alargar as isenções, nomeadamente garantir que todos os atos que resultem de prescrição médica passem a ser gratuitos, como propõe os partidos à esquerda. “Se descermos à especificidade estamos a limitar o papel legislativo”, disse Marta Temido. “Quando falamos de taxas moderadoras estamos a falar de 160 a 170 milhões de euros de receita (por ano). Não é esse valor que nos preocupa. O que nos preocupa é que, se pura e simplesmente deixássemos cair as taxas moderadoras, poderíamos criar uma situação de risco moral, de consumo desenfreado, excessivo e contrário aos interesses da sociedade.”
Pactos de permanência no SNS?
Outro campo em que poderá haver novidades no futuro tem a ver com o trabalho em exclusividade no SNS, uma ideia que sistematicamente surge em programas de governo mas que não tem tido grandes desenvolvimentos. Por agora, revelou Marta Temido, o diploma prevê apenas uma evolução progressiva para a criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas. No encontro com a imprensa, a ministra da Saúde clarificou o sentido da inclusão desta norma. “Parece-nos que, não sendo a exclusividade algo que tenha de ter um caracter obrigatório ou universal, ou seja de abranger todos os profissionais, esse é um caminho que temos de percorrer”, disse.
O quando, quem e como – incluindo o custo de pagar mais aos profissionais para que trabalhem em exclusivo no SNS -são perguntas que vão depender dos trabalhos na Assembleia da República. E se dificilmente haverá mudanças nesta legislatura, Marta Temido elencou algumas hipóteses que vê como bons "desafios" para um futuro programa do governo, como haver um mecanismo de dedicação exclusiva no Estado mas com os médicos a poderem trabalhar em diferentes hospitais públicos. Ou o cenário de os novos médicos passarem a ter um período de vinculação ao SNS após o fim do internato. Em setembro de 2017, o seu antecessor na pasta, Adalberto Campos Fernandes, revelou numa entrevista ao SOL que essa hipótese estava a ser equacionada, o que motivou uma forte contestação dos médicos. Marta Temido reconheceu que sim, mas diz que hoje existe outra abertura dos sindicatos para negociar e recusa que a ideia seja algo de extraordinário, remetendo para o conceito de “pacto de permanência” previsto no Código do Trabalho – a legislação estabelece que, quando os trabalhadores queiram desvincular-se mais cedo, têm de pagar o montante gasto na sua formação pelo empregador. Os internos teriam de devolver ao Estado o valor gasto na sua formação.
O objetivo da revisão da Lei de Bases? “Um Estado mais forte, mais vigilante e mais garantístico do direito a saúde e da boa gestão dos dinheiros públicos”, resumiu a ministra da Saúde, defendendo que o diploma do governo promove a transparência e uma maior prevenção dos conflitos de interesse. Elimina por exemplo a ideia de que o Estado apoia o “desenvolvimento do setor privado da saúde” em concorrência com o setor público, articulado que se mantinha na lei de 1990, mas também a ideia de que o Estado devia facilitar a mobilidade entre público e privado. Também se reforça a ideia de que qualquer contratação a entidades terceiras deve estar condicionada a avaliação da necessidade, com primazia dos serviços do Estado.
Pessoas e não utentes
O diploma do governo prevê ainda a referência a conceitos que já não são assim tão novos mas que nos anos 90 estavam fora do radar político, como a ideia "de saúde em todas as politicas", a necessidade de proteger os cuidadores informais ou de garantir cuidados continuados e paliativos à população, colocando as pessoas no centro de todas as políticas. “Quisemos referir-nos a pessoas mais do que a utentes, para reforçar a dimensão humana de quem utiliza os serviços de saúde”.
"Os serviços públicos devem caminhar para serem mais autossuficientes e robustos", disse ainda Marta Temido, reconhecendo que reforçar o papel do Estado na saúde implicará mais investimento, até para diminuir os gastos das famílias, que hoje são dos mais pesados na Europa. A proposta desenhada pela comissão liderada por Maria de Belém Roseira defendia que ficasse expressa na lei a ideia de que o orçamento anual da saúde deve ser idêntico ao da média dos países europeus, que alocam 6,5% do PIB ao financiamento da saúde. Marta Temido explicou por que motivo caiu essa ideia: "A aproximação à média significa que, quando sobe, subimos, mas, quando desde, descemos também. Historicamente temos valores acima da média e achámos que podia ter fragilidades". O diploma do governo definirá que deve haver um valor mínimo de investimento anual da saúde e a ministra admite que um patamar confortável poderia ser garantir que 15% da despesa global do Estado é feita na área da saúde, a alocação média dos países europeus. Seria uma subida face aos atuais 12% a 13%.