Continuar a brincar com o fogo


Quando não há princípios nem valores, só as motivações de circunstância, o normal é que a circunstância e o imediato tomem conta da ação política. Foi o que aconteceu com as votações na especialidade do Orçamento do Estado para 2019


É engraçado constatar as mudanças de discurso e de humores em relação aos comportamentos políticos de alguns dos subscritores da solução de governo que, desde 2015, vigora em Portugal. Há os intransigentes eufóricos que já se agarram mais ao caminho percorrido do que ao horizonte que aporta. Há os desiludidos de circunstância com a convergência dita negativa de BE, PCP, PEV e PAN para, em conluio com a direita, imporem realidades ao governo e a parte do PS. Há os que, no discurso político em rota de tentação para a maioria absoluta, não hesitam em vociferar sobre a impreparação governativa dos parceiros de caminhada, especialmente em relação ao Bloco de Esquerda. É espantoso que gente com tanta experiência política, tanto mundo (mesmo sem leitura de jornais nacionais) não tenha compreendido ser esse um dos dados colaterais de uma solução que também nasceu de uma coligação negativa: correr com a direita. Quando não há princípios nem valores, só as motivações de circunstância, o normal é que a circunstância e o imediato tomem conta da ação política. Foi o que aconteceu com as votações na especialidade do Orçamento do Estado para 2019. Uma espécie de largada de touros em que, pelo caminho até à praça final, alguns levaram umas leves cornadas, outros foram fortemente colhidos e muitos ficaram incólumes ao risco do exercício. Chegados à praça, as coisas voltam a ser mais previsíveis, mas a grande questão é saber se, no próximo ano, os estropiados deste exercício querem voltar a correr os riscos sem pensar nas consequências, por puro prazer do impulso do momento. É assim com a coligações negativas, as que abriram as portas à troika, as que abriram as portas a uma troika light e as outras.

O que não tem piada nenhuma é perceber que, perante o conhecimento da realidade, os sinais e as tendências, se insista em decidir sem ter em conta as consequências, como se o “quem vier a seguir que feche a porta” fosse o lema do exercício cívico e político.

Há uma discricionariedade do exercício político nas opções e na alocação de recursos que não é sustentável, que será ainda mais insustentável se as circunstâncias gerais nacionais e internacionais se alterarem. E, no entanto, continua-se a brincar com o fogo.

O quadro de referência do exercício político é muito volátil, povoado de fake news e cada vez mais aditivado por fake behaviours. Não apenas é cada vez mais difícil saber-se se o que dizem é verdade ou mentira como se o que fazem corresponde ao pensamento real ou um comportamento postiço, falso, romanceado ou encenado para os mais incautos. A verdade é que o exercício dos comportamentos postiços, das jogadas políticas e das artimanhas na arte do possível continua a encantar muito boa gente, entretida com os acessórios que preenchem o dia-a-dia dos média e dos construtores de narrativas de entretenimento.

Persiste-se em não querer ver os sinais, mas eles não deixam de estar aí.

Tivemos problemas sérios com o sistema bancário português e com algumas instituições nacionais, mas persiste-se em não agir perante os sinais que emanam do processo eleitoral da Associação Mutualista Montepio.

Temos problemas sérios em diversos serviços e pontos do território nacional, mas persistimos em não corrigir as condições para uma melhor utilização dos fundos comunitários. O Portugal 2020 é um dos maiores mistérios da última década. O governo PSD/CDS, que o configurou, não o conseguiu agilizar para produzir efeitos na economia a tempo das eleições de 2015. O governo PS, com o apoio do BE, do PCP e do PEV, não o consegue agilizar para produzir os impactos necessários e o nível de execução de que o país precisa. Gastam-se os recursos nacionais, não se conseguem gastar os recursos comunitários e, a nada ser feito, em territórios que precisam de investimento, ainda vamos acabar por ter de devolver dinheiro a Bruxelas. Será apenas por incapacidade de cumprimento da componente de financiamento nacional ou é também uma dose de incompetência?

Temos situações lesivas dos fluxos da economia nacional que são empurradas com a barriga como se não fossem relevantes para manter um crescimento que alimente o Estado com os recursos necessários para a redistribuição possível. O caso dos portos e do escoamento da produção da Autoeuropa é apenas um dos casos. Grave, mas apenas um de muitos.

Temos problemas sérios na saúde, na educação, na segurança, nas infraestruturas e na proteção civil, mas persiste-se em não ter uma atuação linear, transparente e escrutinável em que todos possam participar na definição das grandes orientações, se clarifiquem os papéis, se saiba com o que se pode contar, além das circunstâncias ou das coligações negativas do momento. Uma atuação confiável, que atue com o registo adequado, a tempo e horas, com fluxos normalizados para a obtenção dos fins de que as pessoas e o país precisam.

Enquanto assim não for, continuaremos a remendar, a decidir em função das circunstâncias e a persistir num exercício político cada vez mais alheado da realidade, da verdade e da sustentabilidade. Será bom para quem está, sabe-se lá o que será para os seguintes.

Quais Neros, continuam a brincar com o fogo. E já nem a Proteção Civil escapa, agora Emergência e Proteção Civil, com uma inusitada desvalorização do papel dos bombeiros voluntários, como se o país pudesse suportar financeiramente um modelo alternativo sustentado na profissionalização.

Escreve à quinta-feira