Sandra Catarino. Os fios e a faca: tempo para tecer e tempo para rasgar

Sandra Catarino. Os fios e a faca: tempo para tecer e tempo para rasgar


“Os Fios” é a estreia de uma professora que deixou em pousio a História para cuidar da escrita que de há muito ia crescendo na gaveta. O romance que agora vê a luz do dia tem as raízes bem mergulhadas na terra, mas aquilo que o move ergue-se muito acima dela


Se há romances que podem justamente candidatar-se a serem assinalados com destaque na nossa ficção recente, “Os Fios” está entre eles. E não precisou, para isso, de uma elaborada construção verbal ou de arquitectar um bordado retórico de grande efeito. Nem de se inchar de referentes literários, num enfiado culturalista por vezes sem mais consequências que o virtuosismo com que se faz e põe à prova a competência do leitor, que assim se limita a exercitar a sua memória cultural e literária. Não que essas referências estejam ausentes, mas encontramo-las, escondidas, nas dobras dos brevíssimos capítulos de que este romance se compõe. 

Optou, antes, Sandra Catarino por uma aproximação às coisas essenciais, procurando falar de tudo com palavras limpas, de sabores perdidos e gosto arcaico, despidas de atavios (o que não serve, pesa). Algumas são iluminações que deslumbram como relâmpagos, espécie de pepitas que terá arrancado ao cascalho dos dias, ao caudal das semanas baças; outras, erguendo-se em frases corredias que respiram o ar da necessidade, caem como um trovão e fulminam-nos o ouvido. Mesmo as mais correntes, parecem sair do dicionário para respirar num território novo, fieis ao rumor do que descrevem ou evocam: “Quem pisa as carumas e as folhas secas?” 

Não que o romance de estreia de Sandra Catarino (a virar a seu favor o lugar-comum da narrativa entendida como trama, entrelaçado, tricotado), possa considerar-se um romance simples. Uma das suas qualidades é precisamente a capacidade de nos falar do essencial – cintilações de infância, as memórias de um amor para sempre perdido, um afago, um entendimento mudo, o júbilo de um reencontro – sem com isso abdicar de uma complexidade que não surge como coisa artificial mas que resulta de uma linguagem de elaborada transparência. Essa linguagem, longe do discurso raso do quotidiano, está apta a desapertar os laços das metáforas para dar vez a imagens: “O corpo do senhor Jacinto é um cemitério cheio de cruzes. Nele estão sepultadas as fragas e todas as memórias do seu amor”. Mas não desiste de interpelar o que está “muito para lá do nosso saber”, incluindo o próprio enigma em que esta narrativa se dissolve. “Nem todas as coisas se querem explicadas”, lê-se num dos capítulos finais. 

São três as mulheres que seguram o fio narrativo: Antónia, a viúva que tece mantas e tricota camisolas, desenrola os fios e agasalha o Outro. Violeta, puxa-os; é a eterna namorada de Joaquim e guarda na gaveta umas botinhas de lã, destinadas aos pés pequenos do filho que nunca terão. Emília, a mulher que tem por companhia única os gatos que lhe roçam as pernas, é quem mais sabe e menos diz; e quando diz, é como se ouvíssemos um oráculo; é um novelo com a ponta virada para dentro. E depois há as Parcas porque a vida é um fio a esgarçar-se: “Quantas vezes me bateram à porta por causa dos mortos? […] Abriam as gavetas e os guarda-fatos e escolhiam o melhor. Queriam-nos bem apresentados quando descessem à terra, os cabelos no sítio, os bigodes aparados, as golas direitas e os punhos engomados.” Cada breve capítulo encadeia-se no seguinte por via de um pormenor, um qualquer ponto de contacto, um eco, criando uma espécie de estafeta narrativa em que cada uma das três mulheres vai passando o testemunho à seguinte, numa corrente de transmissão.

Este primeiro romance vive longe da azáfama e dos confortos da cidade: o tempo, marcado pelo sino do campanário, anda devagar, as madrugadas são chamadas pelo galos, a escrita, bem respirada na sua modulação uniforme, debica na tradição oral: das canções de berço às melopeias em torno da morte, das cantigas festivas aos cantos do trabalho quotidiano, das canções de bem-querer à maledicência. Há arcas de zinco, segredos bem guardados, postigos e cortinas de espreitar. Há candeias a petróleo e sonhos como fachos apagados. E também quebranto e azeite vertido sobre palavras peçonhentas, rezas e benzeduras, falas malignas em roda, traçar de xailes, responsos para encontrar quem não quer ser achado. Movimenta-se a grande distância do mito do “idílio rural”, que estilhaça logo às primeiras páginas. Viver no “Fundo do Lugar” não é pêra doce. É para lá que escorrem as águas das chuvas e as gradações das sombras se manifestam com fulgor negro. Mesmo nos dias em que não chove, a lama não despega, “porque tudo se despeja às portas. Cheira a galinhas, a couves e a bosta de animais”. As amenidades são escassas, a bonança é coisa rara, cada dia de sol é pago com semanas de invernia. É numa noite assim, chuvosa e troante, que chega à aldeia um estrangeiro e a sua filha Maddalena cujos olhos cinzentos atraem e repelem. Nessa mesma noite, a criada do solar vem chamar Violeta, a mulher que ampara os recém-nascidos à chegada ao mundo. Que viesse depressa, que acudisse à sua senhora: a hora do parto chegara. Celeste nasce pouco depois e a solidão há-de envolve-la por todos os lados.  

A construção romanesca não nos surge como coisa feita, já inteiramente pré-fabricada. Este é um romance “in fieri”. Há tempo para dobar, para desenovelar, “tempo de rasgar, outro será o de coser”. Os próprios materiais vão sendo criteriosamente carreados para o interior do espaço ficcional. É como se estivéssemos diante de um romance a cuja construção vamos assistindo, e nela ficando envolvidos, num encantamento e surpresa permanentes. É impossível prever que sentido irá tomar cada novo lance, para onde o levará a força irradiante da escrita, que figuras nos saltarão ao caminho. Seres de um bestiário menor – formigas, o tímido bicho-de-conta – ou animais fantásticos? Samuel, o rapaz que calhou do lado perro da vida, o que imita o canto das aves e desenha bichos no chão, “uma vez desenhou um lagarto com o tamanho de uma vaca. Esteve toda a manhã naquilo. Primeiro fez o contorno e depois sentou-se dentro do lagarto, como se tivesse sido engolido inteiro ou se preparasse para nascer. […] No fim saltou da barriga do lagarto e pôs-se a cantar baixinho, “Lagarto pintado quem te pintou? Foi uma velha que por aqui passou …” Com que figuras nos cruzaremos? Uma Maddalena arrapazada que gosta de boiar no tanque do solar da aldeia ou um estranho ser flutuante, uma Ofélia a sair do quadro de Jonh Everett?

“Os Fios” mostra-nos que nem sempre a literatura está entregue ao facilitismo, nem todos estão dispostos a engrossar a maré literária que por aí tem dado à costa. É um daqueles romances que sempre revisitaríamos, mesmo que a sua autora não voltasse a publicar mais nenhum. Oxalá a gaveta torne a abrir-se.