Quando o Benfica foi a Bagdade inaugurar a maior obra da Gulbenkian no mundo

Quando o Benfica foi a Bagdade inaugurar a maior obra da Gulbenkian no mundo


Exposição “Arte e Arquitetura entre Lisboa e Bagdade” da Fundação Calouste Gulbenkian revisita a presença pouco conhecida da Fundação Calouste Gulbenkian no Iraque, entre 1957 e 1973, com documentos inéditos


Inaugurado em novembro de 1966, o Estádio Al-Sha’ab (“do povo”) engalanou-se para receber o Benfica de Eusébio, José Augusto, Simões, Torres Coluna, Costa Pereira, Germano e Cavém. O esquadrão imortal era treinado pelo húngaro Bélla Guttmann, que rogaria uma maldição ainda em vigor. Campeão europeu nas épocas de 60/61 e 61/62, o timoneiro da equipa-esqueleto da seleção nacional que acabara o Mundial de 1966 na Inglaterra em terceiro lugar deixou uma profecia. Teriam de passar cem anos, até o Benfica voltar a ser campeão europeu. Passaram pouco mais de cinquenta e Ainda não foi.

Naquela época a equipa encarnada era o gigante europeu, imponente em qualquer campo. Naquele dia 6 de novembro de 1966, fora convidado para servir de embaixador e inaugurar um estádio referencial na geografia arquitetónica desse período – e não apenas para o futebol. Era a oportunidade para a presença da Gulbenkian no Iraque ter a visibilidade pública que lhe escapara quatro anos antes quando ofereceu ao país um centro de artes.

A memória está em jogo na exposição “Arte e Arquitetura entre Lisboa e Bagdade”, patente até 28 de janeiro de 2019 na Calouste Gulbenkian. A mostra recapitula a presença menos conhecida da Fundação no Iraque, entre 1957 e 1973, que contribuiu “ativamente no estabelecimento da infraestrutura cultural, educativa, científica e assistencial do Iraque contemporâneo, promovendo e apoiando a construção e equipamento de edifícios, a formação superior e a produção artística iraquiana”.

Arte e arquitetura desempenharam um papel decisivo no desenvolvimento da cidade. O atual Gulbenkian Hall, projetado e construído entre 1957 e 1962 como Modern Arts Centre (MAC) – oferecido pela Gulbenkian à cidade de Bagdade –, serviu de balão-de-ensaio para a construção do grande complexo desportivo. O Estádio Al-Sha’ab “quis dar prova definitiva da competência técnica e disponibilidade financeira da instituição para apoiar a educação, não apenas cultural, mas também física, dos iraquianos”.

Para assinalar a conclusão do projeto-irmão da Sede e Museu em Lisboa, foi organizada, entre 6 e 12 de novembro, a Semana Cultural Gulbenkian. Uma exposição de obras portuguesas e internacionais, recém-adquiridas, que estariam na génese da Coleção Moderna da Fundação, seriam apresentadas.

“A realização do MAC foi-se tornando urgente pelo desenrolar da situação político-social no Iraque”, explica o catálogo da exposição, uma das três inauguradas em simultâneo com “Pose e Variações – Escultura em Paris no tempo de Rodin”, um conjunto de esculturas reunido pelos colecionadores de arte Carl Jacobsen, fundador da Carlsberg, e o próprio Calouste Sarkis Gulbenkian, dedicada à pose na escultura francesa sobretudo da segunda metade do século XIX, e “Al Cartio e Constance Ruth Howes – de A a C”, dos artistas Ana Jotta e Ricardo Valentim, a quem o Museu Gulbenkian convidou para expor no Espaço Projeto.

“Se o MAC constituiu uma entrada no menu preparado pela Fundação Calouste Gulbenkian para alimentar o desenvolvimento cultural, educativo, assistencial e científico no Iraque, o complexo desportivo inaugurado em Bagdade em 1966 e conhecido como Estádio Al-Sha’ab foi a sua pièce de résistance”, é explicado. Um estádio com trinta e cinco mil lugares, preparado para jogos de futebol e modalidades como atletismo e ginástica. Anexados, um campo de treinos de futebol, uma piscina olímpica para competições e recreios com bancadas para mil espectadores, um pequeno estádio para 2500 espectadores, apto a receber jogos de voleibol e basquetebol, combates de boxe e luta; e ainda três campos de treino suplementares. “A obra mais importante realizada pela Fundação, fora de Portugal, na década de 60”, recorda-se. “O nosso maior projeto no Médio Oriente, ou, para o caso, em todo o mundo”, justifica o antigo administrador (e historiador) Robert Gulbenkian, sobrinho do magnate.

A construção fora sugerida pelo primeiro presidente português da Fundação, Azeredo Perdigão, ao primeiro-ministro iraquiano Nuri Pasha em março de 1958, quatro meses antes da revolução que depôs o rei. O projeto não só sobreviveu à intempérie política, que implicou a mudança de regime, como também às flutuações estratégicas dos governantes na gestão dos dividendos da exploração petrolífera.

Com arquitetura do consultor para a Sede e Museu, Francisco Keil do Amaral, e do autor do Estádio do Restelo, Carlos Ventura Ramos, o projeto do complexo desportivo usufruiu das possibilidades técnicas permitidas pelo betão armado.

O momento histórico serviu também de pretexto para a Fundação reforçar a política de incentivo à criação contemporânea, não só adquirindo novas obras para o núcleo de arte iraquiana, como desenvolvendo apoios à formação de jovens artistas locais através da atribuição de bolsas em Lisboa.