Iluminuras é assinado por Théodore Fraenckel, de quem se diz, numa nota final, ter nascido em 1900 e falecido a 3 de Julho de 1950. Acrescenta-se: “De si próprio, nas conversas de taberna das noites de Bruxelas, ao som dos discos de Fréhel ou de Johnnie Ray, dizia ser um “imagista surrealista perturbado pela leitura dos clássicos” – ou coisa como: “Estou vivo, ao que dizem – embora alguns, depois de me lerem, tenham dúvidas””. Já outros comentadores assinalaram as incongruências, como o facto de, nos poemas, serem referidos filmes com datas posteriores a 1950, denunciando deste modo o carácter ficcional da assinatura (o pseudónimo). Porém, é possível divisar o gesto de invenção de uma figura ou personagem, sendo válido supor que ela corresponda a um heterónimo. Por conseguinte, as palavras atribuídas a Fraenckel devem ser lidas com alguma atenção. Como entender a categoria auto-imposta “imagista surrealista” ou a segunda frase na qual se afirma que entre outros efeitos, a leitura tem o poder de fantasmagorizar o autor?
Ainda que muito pudéssemos avançar sobre as duas declarações, sobressai nelas a ideia de que tanto existem imagéticas e imaginários em acção nos poemas, quanto na construção da figura do autor (pensada e descrita em função dos textos). Ora, se Iluminuras espanta pela profusão de linhas de pensamento, aquela que diz respeito às relações entre escrita e imagem é imediatamente assinalável. As iluminuras, letras capitulares, ornamentadas com elementos imagéticos, de cores luminosas e vibrantes, são aberturas pelas quais se evidencia a paisagem, o conteúdo visível e visionário, do texto. Posto isto, perpassa o livro de Fraenckel uma intensa meditação sobre a letra, a forma, e o que ela pode evocar e provocar, a saber, imaginários, fantasmagorias, visões:
De Blake lembro-me ao dizer que escreveu
textos brancos e de inocência a negro
com a tinta que o Inferno lhe deu!
Entusiasmando-me com o processo de feitura da iluminura,
mais do que aos materiais e da pintura ao estilo vigoroso
é ao Imaginário dela solto que dedico o olhar mais atento.
Que tal tenha sido possível, o que depreendo?
Que é escrevendo contra o estilo do momento
que do sentido da Era mais nos irmanamos, por dentro.
Revela-se, nestes versos, um modo de conceber o poético na sua relação com a história distinto das concepções que privilegiam as retóricas realistas. Pois, conforme se lê, através do imaginário e “escrevendo contra o estilo do momento” estabelece-se uma relação íntima com a “Era”. De acordo com isto, o teor testemunhal dos textos resultará menos da descrição ou representação do que da evocação ou alusão simbólicas. Da iluminura (poema) interessa, então, o que se desprende dos materiais e da forma: o imaginário, que surge como amplificação poética da imagem, força dinâmica, originando modos alternativos de percepção ou diferentes formas de ver. A menção aos Calligrammes de Apollinaire, num outro poema, reforça esta ideia:
Guillaume Apollinaire,
sob os obuses da primeira guerra,
ao nos seus poemas introduzir
elementos tidos por inexpressivos
em eficazes caligramas atingiu,
explosiva, uma materialidade física.
Assim, a guerra e a morte
esmaltadas ficaram indubitáveis
águas fortes cujo horror só reencontramos
de novo nos quadros esquisitos de
De Chirico […]"
Não será exagero nosso afirmar que, neste livro, os poemas são percebidos como hieróglifos ou, conforme se lê noutro poema, o primeiro do volume, “Miniaturas de argila, clepsidras,/ fórmulas que o tempo/ como uma cápsula,/ ou uma taça, sobrenada”. Os textos são similares a artefactos, vestígios materiais de coisas já desaparecidas, contudo, passíveis de serem resgatadas. Qual a natureza destas miniaturas arqueológicas, ou melhor, o que nelas está em latência? Encontramos uma possível resposta no poema “John Marr e outras leituras”, onde se anuncia o desejo de uma leitura/escrita (os versos são intencionalmente vagos) que, precisamente e de acordo com o que havíamos adiantado, reanime as imagens do texto:
[…] Era assim que queria
ser lido: como um pensamento
que encrespa as imagens e lhes
comunica a energia que, por
escrito, pareciam já ter perdido.
Guardariam as letras o fulgor
do tesouro que hoje, como ruína,
lhe era devolvido? Restaria
outra alternativa que não fosse
a do crime? […]
Rejeita-se a crença numa poesia circunscrita à matéria verbal, “A poesia, escreve,/ é uma doença: uma dilatação da alma para/ que o corpo ainda não encontrou um satisfatório uso”. Excedendo regimes e géneros, não lhes estando, aliás, submetida, a poesia equivale à expressão/expansão da anima, que nenhum corpo ou forma detém inteiramente nos seus limites. Por conseguinte, a noção de poesia aqui em causa já não se confunde com a arte da versificação. Certo é que em vários momentos se afirma a resistência dos poemas aos preceitos da Literatura, ao seu cânone e às suas convenções, ou mesmo ao seu estatuto de objectos literários. Daí talvez a clara relação estabelecida entre poemas e imagens, correspondendo os primeiros a formas provisórias pelas quais se conserva o resquício de uma experiência singular das segundas:
Que formas, então, aos seus sentidos
as imagens atrairiam? Que fantasma,
mais verdadeiro do que os exorcismos
com que, pela poesia, se o procura
manter irresolvido no fundo
da sepultura? Talvez por isso
o velho pintor aceitou morrer
deixando de si o que soube
manter vivo e perpetuar
pela pintura. Quadro a quadro
encheu a casa de visões”
Rejeitada a celebração do autor enquanto sujeito empírico, pleno, mestre no seu ofício e autoridade última sobre a sua obra; aproveitados os dispositivos da escrita para expandir as imagens e gerar visões, Iluminuras requer exercícios de aproximação ousados, pelos quais a leitura se torna experiência de pensamento e de ativação do potencial imaginário dos textos.
É outro o nosso segredo, certos de que todas
as ficções se finam num pingo de tinta
de onde partem as aves, de asas incineradas,
à procura de um fim que as salve da literatura.
Como pássaros soltos, libertos das amarras do literário, os poemas procuram espaço para recuperarem o vigor e principiarem novo voo.