Changuito: “Para se gozar uma liberdade radical é preciso levar uma vida de samurai”

Changuito: “Para se gozar uma liberdade radical é preciso levar uma vida de samurai”


Changuito transformou a paixão pela poesia numa arca de Noé literária, carregada das vozes de todo o mundo, de várias épocas, latitudes, e que, tendo atracado pela primeira vez em Lisboa há 10 anos, depois de encerrar em 2012, regressa agora, ainda maior e mais ambiciosa


 

Vai ser preciso desenterrar um dos nossos mais jovens mitos no movediço território dos livros. Tão recente ainda, o corpo mal teve tempo de arrefecer e acomodar-se ao túmulo, para que a baba da memória lhe perlasse os ossos. Após uma primeira incursão, que teve na Rua Cecílio de Sousa (Príncipe Real) o porto de tantas partidas como chegadas, a Poesia Incompleta regressa dez anos depois, agora na Rua de São Ciro, na Lapa. Com mais espaço para crescer, não pretende ficar-se por um eco combalido do grito original. Uma das poucas livrarias em todo o mundo devotada inteiramente ao tão minoritário quanto resiliente género, viria a encerrar em 2012, sem dívidas e – ao contrário do que se supôs – não por algum fracasso, ou pela batida noção de que a poesia não vende. Simplesmente, porque o livreiro se apaixonou. E foi-se.

Changuito, como as ruas o conhecem – Mário Guerra, como se lerá nalgum cartório –, figura destacadamente entre o punhado de tratantes de livros ao comando de navios insurrectos nas águas cada vez mais chocas do sector livreiro. Começa a tornar-se evidente que, perante a vertigem de uniformização – com o encerramento das últimas livrarias históricas, e consequente gangrena no que toca à diversidade dos catálogos, bem como a desaparição dos espaços vocacionados para o convívio e o ócio –, os grandes responsáveis por segurar a linha têm sido alguns briosos livreiros. Ocupando posições estratégicas,  em modestas lojas ou esconsos, redefinindo a geografia literária, e andando pelo país como os antigos vendedores ambulantes, atentos às rotas desenhadas com apreciável autonomia por alguns leitores, partilhando o conhecimento dos astros e as cartas de navegação. A ênfase volta a estar no trato pessoal, não em orientações gerais sobre o mercado e preferências ordinárias.

Ao entusiasmo de um romântico desses, como deus manda, passados de moda, Changuito alia a insuperável intuição de um voraz leitor, um autodidacta cujos excepcionais dotes teatrais tornam um infeccioso cicerone no que toca a esses lugares recuados a que só pelo cultivo do espírito se acede. É como guia dessa comunidade de fantasmas, desse universo de textos, vastas e longínquas memórias, que pôs novamente de pé um espaço de babélica imponência, que faz de nós viajantes entre tantos idiomas, lugares e épocas, contra o frouxo encantamento pela novidade que se mostra cega para todo o futuro que só o passado sabe decifrar.

 

Livraria Poesia Incompleta | poesia.incompleta@gmail.com

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Rua de São Ciro, 26, 1200-831, Lisboa
(+351) 914999827
 

O primeiro espaço em que fizeste programação, além de servir atrás do balcão, foi a Barraca ou a Mariquinhas?

A Barraca vem antes de tudo. Entrei para o bar em 1999.

Estiveste lá dez anos?

11. Até 2011.

Depois abriste a Mariquinhas?

Eu acumulava. Saía às 19h30 e ia a correr para A Barraca. A Mariquinhas era um bar, que tinha uma pequena divisão com livros, também só poesia. Mas era essencialmente um bar… Com esplanada, com comidecas. Um bar com livros. Aquilo era pequenino, mas, quando fechei, teria lá uns 1600 títulos. Também já com várias línguas. Abríamos ao meio-dia e ficava aberto até à meia-noite. E todos os dias, como posteriormente na Poesia Incompleta, no princípio, ia a correr para a Barraca, e lá ficava até às duas da manhã. Dependia dos clientes e do aviamento, naturalmente. Eram muitas horas e, se for para trabalho, já não estou para isso.

Qual era o nome do largo onde ficava a Mariquinhas?

Largo de Santo Antoninho [na Bica].

E quanto tempo durou?

Pouco, muito pouco. Dois anos, ou nem isso. Era aquela coisa de um sítio estar na moda mas as pessoas não fazerem mais 50 metros porque depois têm que fazer outros 50 a subir. E antes que surgissem dívidas, fechei e ficou assim, na paz do Senhor. Sem dívidas e sem chatices. É um sítio muito bonito, mas é a tal coisa de andar sempre 3 anos ou 7 ou 9 à frente das tendências. Parece uma coisa muito vaidosa de se dizer, mas não é. Em 1999, havia um recital de poesia por mês, em Lisboa, na Comuna. A Barraca passou a ter quatro no bar. Agora, entre uma pedra da calçada e uma formiga uma pessoa encontra três leituras de poesia. Não tenho nada contra. Está óptimo. Acho mesmo que deviam fechar todos os dentistas e as garagens e tal para dar lugar a recitais de poesia. Mas no caso da Mariquinhas é muito óbvio. Há três, quatro anos a esta parte, com o fluxo de turistas, aquele sítio, com uma esplanada, era dinheiro em caixa.

Mas agora pareces estar a fugir àquilo para que a cidade se está a vocacionar. Abrir uma livraria quando tantas estão a fechar, ainda por cima de poesia…

Mas isso é aquilo que Gilberto Gil diz numa canção: “O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe… O que não sabe, o que não saberia, o que não saboreia”. Se formos sempre pelo que está na berra… O Tony Carreira tem o valor de saber (ele e os seus 35 filhos) o que é que vai chegar ao grande público. Eu acho a pop muito interessante, por isso mesmo. E podemos fazer um paralelo da pop para os outros negócios, e andar a navegar as ondas. Abre uma hamburgueria, e logo abrem 37 hamburguerias. Abre uma casa de nails, gel, gelinho, e a seguir aparecem mais 78. Eu não sei fazer isso. Unhas de gel até me proponho a aprender, mas quanto ao resto…

Mas tens muita experiência a servir copos, e chegaste a ponderar abrir uma casa de vinhos que também vendesse livros, não foi?

Sim. Mas ainda sei menos de vinhos do que de poesia. E com a tendência para o alcoolismo que tenho era muito provável que passasse a beber mais mercadoria do que a que vendia. Portanto, esta opção é uma medida preventiva ao nível hepático. E acho que este sítio fisicamente é melhor do que o da primeira livraria, que ficava na Rua Cecílio de Sousa (Príncipe Real). Tem este micro-palco que construímos aqui, e irá haver “eventos”, como as pessoas gostam de dizer.

Isso é uma grande diferença em relação ao outro espaço.

Sim. Isto vai estar fechado [mostra uma divisória que se corre encerrando a zona do palco], e a ideia é que haja três tipos de actividades: leituras, que serei eu a fazer (não tenho dinheiro para contratar ninguém e também não o faria se tivesse); lançamentos (já há um marcado) e umas conversas cuja periodicidade ainda não sei, mas que se chamarão Tédio Talks, e já umas 20 pessoas aceitaram o convite. Serão conversas com a superficialidade que me caracteriza. Não se aprofundará nada mas é uma marrada leve às TedTalks, que era uma coisa óptima, e em que hoje em dia até o Nilton tem uma.

O Nilton, o piadista?

Sim, já vi uma TedTalk do Nilton. Nada contra o Nilton.

Mas tens alguma coisa a favor do Nilton?

Nada a favor e nada contra. Nada. Mas é a nossa marradinha nas Ted Talks, que obviamente não a sentirão. E é também um piscar de olho ao Baudelaire, já que spleen é tédio. Falaremos longamente de tudo, ou não. Ainda estou a afinar o modelo das conversas e não sei se conseguirei ter um só modelo, tipo cem perguntas fixas que eu baralhe e a cada quinzena ou a cada mês pergunte ao convidado, ou se vai ser uma coisa virada mais especificamente para o convidado: uma conversa, uma entrevista. Mas acho que com a morte de figuras como o Cavaco Silva, o Marques Mendes, o Jorge Lacão, acho que as pessoas precisam de poesia, de conversas, porque deixámos de ter a que nos agarrar, não é?

Sim, sim.

E acho que o fim de 2018 vai ser um período marcante porque, mais ou menos na mesma altura, reabrem a Poesia Incompleta e o Elefante Branco. Parece-me salutar. É uma prova de que a cidade não tem só terceiros andares para oferecer para o Booking. Tem também coisas começadas por p., no caso: poesia e prostituição.

Entretanto, houve uns anos em que levaste a livraria para o Brasil. E por cá pouca gente sabe o que se passou lá…

Não se passou grande coisa.

Mas tiveste lá uma livraria durante dois ou três anos, não foi?

Estive lá três anos e a livraria durou ano e meio. A livraria veio-se embora antes de mim.

E era num décimo andar?

Décimo primeiro. Na Lapa. É engraçado porque era na Lapa, lá no Rio, e agora é na Lapa, aqui.

E como foi?

Era muito complicado. A única decisão profissional errada que eu tomei na vida foi ter saído daqui. Mas havia questões pessoais mais fortes, mais sérias. No último ano, quando disse ao contabilista que ia fechar, ele disse-me: “Você é maluco! Em 2011 (ano anterior), fecharam sete livrarias históricas em Lisboa, a sua cresceu 20%… Você é doido se fechar.” Em 2012, em Março, fechei. Foi por questões pessoais, não tinha nada que ver com o negócio. Mas como a raça humana… (há 10 anos diria os portugueses…), mas como a raça humana tem a necessidade do horror, houve muita gente que me dizia: “Pois, fechaste não é? É natural. Também a poesia…” E não, não foi por falta de público. Fui de férias à Síria um mês, estive três meses no Brasil, fui à Turquia, Paris… Tudo com dinheiro da poesia… Milhões e milhões de dólares da poesia. Para mim é simples o ter de optar entre a vida pessoal e a vida laboral. Esta perde sempre. Foi o que aconteceu. Na altura não podia divulgar isso nos jornais, nem tinha de. Não ia dizer ao “JN”, ao “Público” e à “Antena 1”: olhe, vou-me embora porque me apaixonei e porque me vou casar. Vou para o Brasil viver com uma miúda. Não servia para nada estar a dizer isto. Esta lógica agora de terem de saber tudo, de se fotografarem a acordar assim, e vou dormir assim, e tenho um cão assado, um gato cozido… Não é o que faz as minhas delícias.

E o Brasil?

Foi mau, mas mau MESMO. Muito mau. Tinha mais livros brasileiros em Portugal do que os que consegui ter no Brasil. Passei por várias histórias burlescas. Tenho um íman para malucos, mas ali foi um atropelo de histórias de monumental incompetência, de levarem uma encomenda de (fazendo o câmbio) uns 700 euros, e aparecer-me um gajo com quatro sacos de plástico. E eu: “Bom dia”. Ele: “Oi, aqui é o negócio da Poesia?”. “É.”, “Pois tenho aqui uns livros para entregar.” “Então, e vocês não têm caixas?” E isto, sendo que o editor, aquando da encomenda, me disse: “Que bom. Ninguém compra estes livros.” E o rapaz aparece-me com os sacos e diz-me: “Tem caixa. Mas é para quando a encomenda é grande. Quando é livro mais assim tipo best-seller.” E então os livros chegavam-me assim todos amarfanhados uns nos outros. É aquela coisa típica carioca: “Te retorno em cinco minutos.” E depois és tu que ligas durante três semanas para ter uma resposta. Depois há aquela coisa que eles têm com o calendário… Se é Janeiro, “Epá vem o Carnaval. Com o Carnaval está complicado. Aqui está entrando no recesso.” Se falas em Setembro ou Outubro, “o Natal tá não sei o quê…” E tu pensas: mas como é que é possível estarem proto-paralisados tanto tempo antes de cada coisa. Depois trabalhei numa livraria, a maior do Rio, e vi que o problema era o mesmo.

Como se chamava a livraria e quanto tempo trabalhaste lá?

A Travessa. Trabalhei quatro meses. Aquelas coisas bem minhas: quando o contrato estava assinado, quando estava tudo em ordem, saí. É uma livraria que fica no centro, na Sete de Setembro. Com três pisos e 600 ou 700 metros quadrados.

E tinha uma boa selecção de livros?

Não. Não e sobretudo tinha uma idiota a gerir aquilo. A directora de compras trabalha lá há 20 anos, filha de portugueses – Sóninha –, e está sempre a pôr a pila para fora.

Como…?

Sempre a pôr a pila para fora em termos de poder. Um exemplo óptimo: Saiu “Os Diários de Adão e Eva”, do Mark Twain, que não era uma pessoa que estivesse muito preocupada com as questões LGBTQSWYZZZ. Era um grande pensador mas de outra época. Uma altura em que havia escravos. É o mesmo que dizer assim: “Ai! na Grécia eram racistas… Eram esclavagistas…” Pois eram. Não havia o conceito de machismo. Era uma democracia para uns senhores, o resto era tudo escravos… Mais ou menos como é hoje em dia. E eu disse: “Olhe, Sónia, não deixe de comprar este livro porque é um livro extraordinário, e que nunca foi editado no Brasil.” E ela comprou três, para uma livraria que recebe à volta de mil pessoas por dia. E eu: “Já leu, já leu?” Ela: “Vou ler, esse final de semana.” E eu na segunda: “Leu? Gostou? Não é um livro maravilhoso? A Eva a escrever sobre o Adão, o Adão sobre a Eva, com a estranheza que é ser o primeiro homem, a primeira mulher…” E ela: “É. Achei simpático, mas a questão é que eu acho assim muito machista.” E eu, encolho os ombros. Pronto, está bem. E passou-se exactamente o mesmo com “Aventuras do Valente Soldado Svejk” [de Jaroslav Hasek].

E qual foi a reacção dela?

“Achei curioso assim… achei meio chato.” E eu: “Chato!” Para uma pessoa que vem das Sombras de Cinza de Grey, Cinquenta Cinzas de não sei quê… “Achou chato?” E diz-me: “É. Achei que falta pegada.” Depois era muito engraçado porque uma semana depois saía na “Veja” ou na “Época”… E elas: “Ah, você fala que não lê as revistas, mas você está antenado. Porque você falou no livro e agora está aparecendo.” A “Veja” fez um destaque de duas páginas com o Svejk, “Os Diários de Adão e Eva” teve umas colunas não sei onde. Havia um tipo lá na livraria que sabia de livros, um pernambucano que estudava cinema. De resto, era um abismo. Havia uma rapariga formada, que estava a fazer o mestrado ou doutoramento… “Estou estudando as enfermeiras da Grande Guerra, até fui em Londres. Fiquei lá uma temporada, lendo.” E eu: “Ai é, e o que é que gosta de ler?” “Fantasia.” E eu: “Mas fantasia é o quê?” “Ah, o que tenha monstro, hobbit, seres do bosque…” Era nesta base.

Quem te conheceu na Poesia Incompleta ou até na Barraca fazia de ti a ideia de um embaixador não-oficial do Brasil, e sobretudo um fã dos cariocas. Puseste os papéis para te libertares dessas funções ao vir de lá? Perdeste algum do encanto que tinhas por aquilo?

Continuo achar aquilo maravilhoso. Se tu fores velho e tiveres dinheiro. Para morrer é óptimo. Se fores jovem e tiveres dinheiro é óptimo. Se fores de meia-idade e tiveres dinheiro é óptimo. Acho que para férias é maravilhoso. Para o tipo de personalidade que eu tenho, aquela coisa do Henri Michaux – “eu que por ti enfrentei toda uma cidade…” –, quando todo o funcionamento é assim… Porque depois eu trabalhei numa imobiliária…

O quê!?

Depois da minha livraria e antes da Travessa, sim.

Quanto tempo durou isso?

Só lá estive um mês, infelizmente, porque eles pediram-me uns documentos que tinham garantido que não iam pedir… (O tipo foi vigarista…) Mas percebi que era o funcionamento não só das cafetarias, não só das editorias… E quando tu estás contra o funcionamento de uma cidade não podes estar nessa cidade. És tu que estás mal. Agora, em termos de lazer, em termos de: vou apanhar sol, vou conversar com umas pessoas óptimas para beber cerveja… Ah, nisso é imbatível. Tenho um grande fascínio por aquele lado do mundo: México, Colômbia, Uruguai… Acho que há ali um mundo mais engraçado, mais telúrico, e mais leve, no caso do Brasil, que apela a pessoas como eu, que somos pesadas… Mas continuo a ser absolutamente fã da música. Acho que é um viveiro de grande poesia, cinema maravilhoso, pintura maravilhosa, arquitectura maravilhosa… Geograficamente é difícil pedir mais… Queres neve, tens neve; queres montanha, tens; queres praia, queres rio, queres jacarés, queres pretos, queres brancas, queres índios… Tens tudo. É um continente, uma coisa extraordinária ao nível da diversidade. Para trabalhar, assim para pessoas mais ou menos do meu estilo, é um bocadinho enervante. É tudo para amanhã, depois amanhã ligas e é aquele texto do Almada do miúdo que chega à escola e vai dando desculpas para não ter feito o trabalho. Género: Morreu-me o tio e tal. E depois já não é que tenha morrido o tio, mas já não sabemos dele há muito tempo, e estamos todos em suspenso. O mestre vai pressionando-o e ele vai inventando as coisas mais rocambolescas, e já está tudo à espera do tio. Depois acaba a dizer: “Eu fiquei a ver uma boneca numa montra. As mãos, as mãos da boneca…”

E alguma coisa mudou?

Desde a primeira vez que fui ao Rio e trabalhei esporadicamente em produção de teatro, via que as coisas eram assim. No Rio, muito especificamente. Em São Paulo, acho melhor. É uma banalidade que se diz, mas é verdade. Fui como orador convidado a um festival e aquilo funcionou tudo muito bem. Não houve nada que dissessem: fica para amanhã, depois de amanhã. Não. Funcionou tudo.

Comparando realidades: Portugal também parece estar a querer encarnar uma cultura festiva, ser um destino, um atraente postal para estrangeiros. Hoje, tudo se passa na base dos eventos, dos happenings… Se até são muito bem organizadas, depois parece que as coisas não chegam realmente a acontecer.

Estamos sempre à espera do próximo acontecimento. Estou a comer este hambúrguer, que é maravilhoso, mas o cabrito em Carnide é que é… São uns tempos muito doidos. E acho-os muito engraçados. A próxima coisa é que vai ser. Se houver documento, então esta coisa foi fantástica, mas a coisa a seguir é que vai… E depois há aquela frase do Erik Satie:  "Quando eu era jovem diziam-me: quando tiver 50 anos é que você vai ver. Tenho 50 anos. Não vi nada.” O Herman num sketch também já dizia: “Os portugueses são muito hospitaleiros, gostam muito de hospitais.” Acho que isto tem tudo. Lisboa está na berra. E gosto muito de um discurso que há agora e que ouço a várias pessoas que eu conheço: “Epá isto está cheio de turistas. É uma merda, pá. Estou farto de Tuk Tuks…” E perguntamos: “Então e o que é que tu andas a fazer agora?” E a resposta: “Tenho duas casas que estou a alugar no Airbnb.” É como ouvir do dealer de heroína: “A toxicodependência é uma coisa que me chateia, pá. Não sei o que é, mas aflige-me.” É muito esquizóide este discurso.

E que tal te parece esta cidade nova?

Acho que há melhoras óbvias na cidade. Como em todos os processos, também há coisas que pioraram. Mas em que parte do mundo é que há melhoras óbvias sem haver pioras óbvias? É muito raro. Esta coisa do: “Não nos despejem, não-na-na-nã.” Não foi este governo que fez essa lei. Foi a doutora Assunção Cristas, que também é uma pessoa que faz muita falta a Portugal. A sua morte prematura deixou-nos órfãos a todos. As pessoas estão esquizóides. É a tipa que queria propor o aumento para vinte e tal estações de metro em Lisboa e um ano depois votou contra a diminuição do custo dos passes. Portanto, ela quer muito metro mas para quem, exactamente? Para uns senhores da Finlândia que vêm cá passar uma semana? Que acham tudo fantástico e pagam seis euros para andar de metro? Agora, a cidade está com mais prédio renovados… Lembro-me da Mouraria, de Alfama, da Madragoa, lembro-me do Bairro Alto, porque vivo nesta cidade há muito tempo, vivo-a muito, ando muito a pé, e é óbvio que há coisas que estão melhores. Toda esta zona em que a malta mais jovem foi morar – Penha de França, Anjos não sei o quê –, era tristíssima… Bem, continua um bocadinho triste… Mas era tudo casas muito feias, todas da mesma cor, muito cinzentas, muito tristes. Hoje, umas estão amarelas, outras vermelhas, outras grená… Há alguma coisa a renovar-se. E eu ando de metro e esta conversa de que o metro é péssimo… Não é péssimo. Há dois anos comparei e o metro em Lisboa tinha menos quatro estações do que no Rio de Janeiro, e menos 15 do que em São Paulo. O metro em Lisboa é bom, é limpo… Não há 60 assaltos por hora. Mas como em tudo acho que se pode melhorar muita coisa.

O que é mais notório nesta mudança quando vais para os teus passeios à noite?

O meu pai vivia no Parque Mayer e nós fazíamos caminhadas longuíssimas. A Baixa, às oito da noite, não tinha ninguém. Mas ninguém! Uma pessoa via alguém a 300 metros e pensava: vai-me matar?, dar cabo de mim?… dada a raridade de ver uma pessoa na Baixa. Mas depois é aquela coisa muito excessiva dos portuguesas. Abrem uma hamburgueria que resulta e aparecem logo 35. Abre um hotel, e aparecem 35. Não se consegue ficar só com a parte melhor. É claro que há coisas que funcionam muito mal, mas deviam ver como é noutros países.

Entretanto, regressaste do Brasil e tiveste a experiência da Taberna [na Rua 1º de Dezembro]. Quanto tempo foi?

Três anos e três meses.

E em termos dos clientes que servias, a divisão rondava os 40% portugueses, 60% estrangeiros, certo?

Sim, era relativamente equilibrado mas com um bocadinho mais de estrangeiros. E foi muito bom, mas eu estava com saudades de estar sentado. Coisa que na hotelaria não se consegue a não ser que não haja mesmo clientes. Mas foi muito bom. Percebi uma coisa que é importante para mim, que penso muito no humor, que leio sobre o assunto há muitos anos e gosto desde miúdo de fazer as pessoas rir: percebi que conseguia fazer rir as pessoas além do português. Que conseguia fazê-las rir em espanhol, em francês, em italiano, em inglês… E é uma adrenalina muito grande. Agora, é uma coisa de um atrasado mental. Só episodicamente, para as pessoas com quem tinha casado, é que tinha cozinhado. E de repente estava a cozinhar para pessoas que não estavam ali para se casar comigo e que, nessa base, teriam naturalmente um grau de perdão maior. Mas escreveram coisas super-entusiásticas na internet, e eram muito entusiásticos comigo. Às vezes estavam quatro dias em Lisboa e iam lá jantar três noites. E eu gosto dessa coisa, que é a parte de servir à mesa, em que as pessoas são completamente invisíveis… Em que as pessoas são tratadas abaixo de cão. As pessoas só têm menos respeito por varredores de lixo. E dava-me um certo prazer subverter um bocadinho isso e de repente os clientes darem-se conta de que há pessoas que o que fazem é servir às mesas, que não são tudo robôs… E contava histórias, falava com as pessoas, ouvia histórias, e normalmente riam, que é uma coisa que eu aprecio muito. É esse o aspecto em que isto [uma livraria] perde, porque tem menos. Sei que vai haver menos gente a rir aqui, mesmo que haja o mesmo número de gente. E o riso para mim é uma coisa vital. Como eu não o tenho, gosto de o ver nos outros.

À distância a que estavas daqui, no Brasil, como foi pensar sobre os quatro anos de vida da Poesia Incompleta?

Eu sou um galgo. Põem-me a correr num bosque e eu corro e vou contra as árvores, magoou-me e continuo a correr, que é uma coisa que os galgos fazem. Não aprendem. À distância, falava disso no Rio. Não é uma coisa saudosista, pois não tenho nada aquela ideia – “the older I get, the better I was” –, não é uma coisa para que me dê… mas já em Lisboa tinha essa noção… Primeiro era a liberdade, do ponto de vista individual… liberdade absoluta! Acordar às sete da manhã e dizer para mim: Agora vou eu encomendar livros, vou eu arrumá-los, vou eu fotografá-los, vou eu marcá-los, e são os livros que eu escolhi, e é uma espécie de coisa abençoada. E isto estando perto de uma coisa de que gosto muito: livros. E de outra de que ainda gosto mais, que é a poesia. Já no Brasil, por comparação, tinha essa noção clara: de que fiz uma coisa (que agora estou a refazer do zero, e da qual, sabendo que excesso de modéstia é vaidade, posso dizer objectivamente, sem achar que é vaidade) rara no mundo. E não é raro porque o videoclip tem mais visualizações, é raro porque não há mais. É uma questão de variedade, uma questão de não compromisso com o paroquialismo…

Em que sentido?

Acidentalmente, nasci em Lisboa. Estava para nascer no estrangeiro. Mas o facto de estar em Lisboa não me obriga a ter só poesia portuguesa. Nem me obriga sequer a achar que a edição portuguesa é a mais importante, ou que a poesia portuguesa é a mais importante. E até acho que a poesia portuguesa é muito boa. Acho que está quase sempre acima do nível das nossas outras artes. Tivemos melhores poetas do que pintores, que arquitectos, que ensaístas. A nossa poesia é melhor que o teatro, é melhor que o cinema, é melhor que a música. E acho que isto é mais ou menos objectivo. Tu tens, no século XX, ao mesmo tempo, muita gente boa a escrever. Não tens tantos compositores assim tão bons a compor música. E, para lá disso, eu não tenho nenhuma obrigação para com a poesia portuguesa, não tenho nenhum contrato com o Instituto Camões. Portanto, recomeço, não ainda como fechei – porque fechei com 59 línguas, e isso é mesmo algo de que me orgulho muito… Coreano, vietnamita, búlgaro, náuatle… E quero voltar a fazer isso. E provei, não é ao mercado, não é ao instituto de Meteorologia, não é à Manuela Eanes, é a mim mesmo, que se pode viver disto, e que as pessoas compram essas coisas, porque não as encontram fisicamente e porque procurar o que não se conhece na internet é difícil. “Ah, não conheço nada de poesia da China. Vou ver se me aparece no google poesia da China de prostitutas do século VI.” Ninguém se lembra disto. Mas há. E eu tinha, e vou voltar a ter. E vou tentar que a experiência seja, a esse nível, igual ou melhor. Mais diversa ainda se conseguir. Ter uma amostra substante da poesia do mundo. Poesia e correlatos: biografias sobre poetas, ensaios sobre poetas, ensaios de poetas, traduções de poetas… Porque não sinto que tenha algum dever a mais para com a poesia deste país ou de qualquer outro. Se abro uma livraria de poesia, quero ter poesia de todas as épocas… Vai ser exactamente o mesmo modelo: livros novos, livros esgotados, alguns livros manuseados, antologias, coisas em áudio… E sim, no Brasil tinha a noção do que consegui fazer em Lisboa, porque lá a livraria era mais pobre. Tinha menos espaço, menos livros. Era uma sala de 30 metros quadrados toda forrada, com excepção da janela, a estantes. E cheia. Mas tinha essa noção: foda-se, em Lisboa eu fiz uma coisa realmente boa, e mesmo difícil de bater. E no Brasil, por exemplo, houve uma costa-riquense, que vivia em Boston, onde há a Grolier, que tem 80 ou 90 anos, e eu falei-lhe desta livraria como a cena e ela disse-me: “A Grolier é maravilhosa, mas tem 150 anos de poesia anglo-saxónica, não tem mais. Tu tens muito mais variedade aqui, no Rio de Janeiro.” E eu pensei como é engraçado isto que fazemos, o fantasiarmos com as coisas à distância. É a tal coisa: o cabrito é que vai ser bom. Este fondue está óptimo mas o cabrito é que vai ser. Depois chegas ao cabrito e já não é a cena, é o pargo que vai ao sal na sexta-feira.

Além do que a Poesia Incompleta era como um espaço para quem o descobria, esta teve também um papel importante pela tua capacidade de…

De agregar?

De criar um espaço de tertúlia, um lugar onde muitas pessoas se conheceram. O Vitor Silva Tavares passava por ali, o Alberto Pimenta, o Rui Caeiro, o António Barahona, para falar só nos mais velhos…

Sim, velhos, novos, homens, mulheres.

E o que é que gostarias que se repetisse e que não se repetisse dessa experiência?

É a tal coisa do galgo… Há umas pessoas que fazem umas afirmações sobre mim, como haverá outras que as farão exactamente ao contrário, e falam dessa coisa agregadora. Eu não a sinto. Na minha vida pessoal não me sinto agregador. Uma coisa que a sociedade tem como uma excrescência desnecessária, para quem está dentro dessa razão, necessita muito dela, como é a poesia, como é… Dou sempre este exemplo, e as pessoas normalmente pensam que estou a gozar: Quando eu era miúdo havia uma loja de aeromodelismo, e ficava na Amadora.

Aeromodelismo?

Sim, aquela coisa que o Júlio Isidro adora: construir aviõezinhos telecomandados, construir carrinhos e tal. E aqueles dementes iam todos para a Amadora. Epá, eu se fosse do aeromodelismo não sei se me ia meter na Amadora. Renovar o passaporte, trocar dinheiro para me ir meter na Amadora… Mas eles iam todos. E eu acho que há uma necessidade de quem é expelido, de quem ou não é do centro ou não quer estar no centro, encontrar nas paralelas espaços em que se reconheça, em que pense: aqui falam a mesma língua. Não é à toa que as pessoas não vão conviver para o SEF, as pessoas não vão conviver para os consulados, não vão conviver para os cartórios, porque aquilo é uma coisa de que necessitamos todos mas onde somos maltratados. Há uns bisontes, depois há uns suricatas que correm ao lado, e quem é expelido do centro, quem não se sente bem a querer comprar um livro e dar com um computador, com uma batedeira, com uma bimby… se calhar depois encontra nesses sítios um poiso, um sítio onde sabe que vai conversar, onde sabe que vai encontrar o que não encontra noutro lado. Um sítio com uma velocidade diferente, com uma luz menos desagradável, com uma música mais agradável, e a lista continua. A valsa avança, quer dizer, é infinito. E acho que isso acontece em outros espaços.

Queres dar exemplos desses espaços?

A Letra Livre [Calçada do Combro 139], que para mim é a melhor livraria de Lisboa, senão de Portugal. Acho que as pessoas vão lá por várias razões que têm a ver com os livros e também têm a ver com o lado humano. E também tem a ver com o que eles sabem. O Carlos, a Eugénia, o Eduardo. É o que eles sabem sobre os livros, sobre as edições… E depois, ainda por cima, conseguem o livro. E isso leva a que quem está permanentemente a ser enxotado, a ouvir: “Não temos. Está esgotado. Foi descontinuado. Não temos mas podemos encomendar…”, que é aquela coisa irritante: a dificuldade hoje de comprar um livro directamente. “Tem?” “Não, não tenho mas posso encomendar. Quer?” “Não eu não queria que você encomendasse, eu queria ter o livro, estava-me mesmo a fazer falta ler isto…” Fora as novidades, cada vez mais é isto o que ouves nas livrarias. Por isso me parece que espaços ideologicamente um bocadinho excêntricos, um bocadinho desviados do centro, tendem a agregar as pessoas, e depois também os malucos… Acho que para lá da minha personalidade específica, e embora consiga aligeirar uma conversa, dizer umas graças, laboralmente ficava doido quando não tinha um livro. E conseguia-o. Encomendava-o de França, de Espanha, de Itália ou Inglaterra. E um dos principais orgulhos que eu tinha era uma pessoa em Vila Real, em Trás-os-Montes ou no Algarve, receber o livro no dia seguinte. Isso dava-me imenso gozo.

Se espaços como este fazem um sentido ‘danado’, pensando na geração do teu pai [Mário Alberto (1925-2011), pintor, cenógrafo e personagem mítica da boémia lisboeta], da tua mãe [a actriz Maria do Céu Guerra], face a esta conquista do espaço real pelo virtual, pelas redes sociais…

Eu gostava muito de ver o meu pai no Twitter, no Pinterest. E o Luiz Pacheco no Instagram. Dava o cu e oito tostões para ver o Pacheco nessas coisas… Adorava.

Estava a ler no outro dia um relato do Baptista-Bastos sobre esses outros tempos, os anos 50, 60, e se ele dizia que foram anos muito difíceis, muito tristes, ja nestes não conseguia encontrar-se com os amigos nos cafés, na rua… só encontrava o deserto.

Também eu tendo para o catastrofismo. A catástrofe é uma coisa que nos dá a mão mais seguramente do que o sucesso. Empresarialmente, também. Mas acho que há outras pessoas, noutros cafés. Isto não é dizer bem dessas pessoas nem bem dos cafés. É achar que o tempo mudou. Há outras coisas que não sei se são melhores. Vou reservar a minha opinião sobre alguns cafés e algumas pessoas e vou louvar outras pessoas e outros cafés. Acho que há uma outra forma de convívio. Percebo que um homem inteligente como o Baptista-Bastos faça uma glorificação dessas no meio da merda, porque para ele aquele tempo era a merda. Uma ditadura, respirava-se mal, o tecto estava baixo, toda a gente tinha razão para estar triste. Agora temos todos razões para estar alegres e também não estamos muito. Talvez não seja, por isso, uma coisa da época mas do homem. Como diz o Millôr [Fernandes], “a raça humana é uma experiência que não deu certo”.

Só um aparte. Lembras-te de uma vez me teres falado de uma coisa que se passou com o Leopoldo María Panero, em que a meio de uma entrevista lhe perguntaram…

No “Babelia”. Sim, o Panero, maluco. Perguntam-lhe porque é que ele está sempre a citar outros autores: “Você cita o Blake, cita o Cervantes, cita não sei quantos…” . E ele arregalou os olhos e disse: “É para que vocês me levem a sério.” Ele achava que se falasse só com palavras dele não iriam acreditar nele. E eu sou absolutamente desse estilo. Ainda não me internaram, mas é essa a minha espécie. Acho que a citação, se é bem feita, se não é aquela coisa… “Ai, o Chesterton disse: Os poetas têm sido estranhamente omissos em relação ao queijo.” É uma frase que eu adoro, adoro. Acho que se as citações forem fidedignas, se não forem “Fernando Pessoa disse: Que luar tão bonito!” Acho que validam uma ideia às vezes trôpega que tu estás a querer passar. Porque tu citas uma coisa que vai soar aforística, tchan! E às vezes as ideias são uns comboios meio descarrilados… E essa coisa: “O entusiasmo é uma grosseria.” Pá! Está arrumado o que é que tu pensas sobre o entusiasmo. Acho que o Panero se servia das citações porque era maluco, drogado, tinha todas as razões para achar que não o levavam a sério, e se calhar não levavam. E a mim parece-me que a citação, quando não é aquela coisa de deixar cair nomes à bruta, para provar que somos muito espertos, que temos intimidade com este autor e aquele, quando é para reforçar uma ideia, gosto muito da citação. É uma ajuda.

Voltando então ao Baptista-Bastos…

Acho que os tempos são todos sombrios, depois, como diz o grande António Barreto, com aquelas mãos à frente, “a saúde está melhor, há 30 anos morria-se mais…” Ele tem os dados da Pordata na ponta da língua. E, de facto, nós temos mais dentes hoje. Morremos menos de tuberculose, até já morremos menos de sida. O cancro é que não há meio. Mas há uma série de coisas que estão objectivamente melhor. Há mais pessoas a saberem ler, há mais pessoas a comerem três refeições por dia… Depois é claro que continua a haver o 1% e os restantes 99. A forma como se convive hoje é diferente, mas tu tens, no século XIX, já não me lembro se é o Eça… mas alguém diz: “Entra-se hoje numa livraria e só se vê porcaria.” E na Grécia [Antiga], já há textos a falar da crise do teatro. É uma frase que me lembro de ouvir a minha mãe repetir… Não é a Grécia do Varoufakis, é na Grécia do Eurípides. Portanto, se os esperançosos vêem o futuro como uma utopia… “Cada pessoa vai ter direito a 70 virgens em vida…” Os pessimistas dizem: “Isto era bom era no antigamente.” Eu não tenho a noção de que alguma vez tenha sido bom. Acho que antigamente não era bom, e em Portugal, com uma ditadura, conheci muita gente que foi presa, que levou porrada… O pai da minha mãe teve problemas de saúde que, com certeza, não foram ajudados pela prisão. Como aconteceu a muitos milhares de portugueses. No Brasil, a mesma coisa. Em Espanha, mais duro ainda do que em Portugal. Mas o buraco é mais em baixo, como dizia o Vinicius [de Moraes]. Acho que não vem aí uma coisa muito boa… Mas também não viemos de uma coisa muito boa (risos). Os palácios eram uma maravilha… o problema é que a maior parte das pessoas não vivia em palácios, vivia em trapeiras. Quanto a esse lado do convívio, quando tu és oprimido, se calhar gera-se uma imediata necessidade de confraria, de pertença. Fora das ditaduras há menos isso. É um bocadinho: cada um por si… E Trump por todos.

Continuando…

No outro dia alguém me disse que esta livraria não vai ser o mesmo que foi a primeira Poesia Incompleta, no Príncipe Real. E eu disse: “Não, provavelmente não. Tem mais espaço, tem um micro-palco que eu fiz…” E essa pessoa: “Não, não, não estás a perceber…” Eu estava a perceber perfeitamente. Da porta para dentro, vou tentar fazer tudo igual, até melhor. Maior, mais ambicioso. Se puder ter 79 línguas, 99 línguas… bosquímano, ter aqui um preto só a dizer poesia em estalinhos de língua, isso era uma coisa que eu acharia maravilhoso. Do ponto de vista do convívio, cabe às pessoas…

Não há então aqui uma saudade em relação à vida da anterior livraria, àquele espaço que se foi tornando um lugar de tertúlia para tantos leitores e poetas?

Não, não. Espero conseguir ter a mesma sensação de liberdade. Liberdade radical: abdicar de umas coisas para poder usufruir das outras, que é uma coisa que não há muito na atitude contemporânea. As pessoas preferem não abdicar de nada… os millennials… E pronto, estão no seu direito, benza-os Deus. Longa vida aos millennials! Muita ritalina, muito I-Pad, muito MDMA, tudo.

Uma diferença evidente é a possibilidade de receber muito mais gente ao mesmo tempo… Cabem aqui à vontade meia centena de pessoas numa apresentação ou numa leitura.

Uma vez a Poesia Incompleta teve uma pequena notícia no “Metro”, num dia em que o Eucanaã Ferraz foi lá. Aquilo estava aí com umas 20 pessoas distribuídas pelas três salas. E o Eucanaã, que tinha chegado com mais pessoas, espantado, dizia: “Isso é um sucesso! O que é isto? Muita pessoa idosa perguntando…” Lembro-me que apareciam pessoas a perguntar se podiam deixar os livros ali à venda. Um homem mais velho: “Tenho um livro… Gosta de poesia erótica?” E eu: “Não. Gosto de poesia pornográfica!” O Eucanaã ria… Na outra livraria cabiam muitas pessoas muito apertadas, mas eram três salas. Este é um espaço muito maior. No total tem 100 metros quadrados, enquanto o outro tinha metade disso. Aqui cabem mais livros, e eu fiz este palco porque nesta zona não podia pôr estantes, por causa da cozinha que há ali atrás. A única coisa que a senhoria me pediu foi que não desmontasse a cozinha…

Já fizeste algum cálculo de quantos livros precisas de vender por dia para aguentar isto?

Já… mas essas coisas são muito chatas… É ter uma vida de samurai, como tinha no outro sítio. É reduzir os custos ao máximo…

Não vais ter ninguém a trabalhar aqui?

Não. Gostava de ter ou o Marques Mendes ou um anão sempre de costas para se pensar que era uma criança. A arrumar os livros em baixo. Depois eu virava-o e era o Marques Mendes para assustar as pessoas. Ou a Maria de Belém, com aquele cabelo. Mas não, não acho que seja preciso. Nos dias das Tédio Talks e das leituras e tal, vou precisar de uma pessoa para estar à atender, pois não posso estar aqui na palheta e a ver: olha, aquele está ali a roubar o livro dos poetas peruanos. Mas, de resto, o funcionamento vai ser exactamente como na Poesia Incompleta. Até tenho um correio mais próximo.

E isso dos eventos vai acontecer com que periodicidade?

Os lançamentos vão ser mais esporádicos. Os Tédio Talks não sei… Se calhar uma vez por mês.  E as leituras também. Entretanto, vem cá um mexicano já no fim do mês, um académico mexicano que fez uma tese com leituras do Pessoa, e que prova que o Rulfo roubou umas coisas ao Rilke. E faz a leitura do Rulfo através das coisas do Rilke. É uma grande cabeça.

E não pensas cobrar nada às pessoas que venham para assistir a essas sessões?

Ainda não sei, ainda não defini isso. Não sou muito favorável àquela lógica de passar o chapéu, ou lançar uma campanha do estilo: “traga um quilo de arroz para alimentar o livreiro”, “Banco Alimentar para o Livreiro”. Essa parte ainda não decidi.

E está sempre aberta a hipótese de te apaixonares e isto acabar de repente.

Eu estou apaixonado agora. Estou apaixonado por uma pessoa de Lisboa, portanto, em princípio não vai haver problema. Mas sim, está sempre tudo no fio da navalha. Por causa de ter vivido na Baixa estes últimos anos, tenho uma ideia de usar o slogan: “um soft opening até ao hard closing”. Porque agora os espaços já não fazem inaugurações, fazem um soft opening. E então, pensei em adoptar este moto. Quanto à minha vontade, tendo como certo que nunca serei rico, portanto nunca irei deixar de trabalhar, e sabendo que ninguém me vai pagar viagens ou seja o que for, a minha vontade é que isto dure muito tempo.

Ainda fumas dois maços por dia?

Sim. Mas já fumei quatro, portanto, já foi uma redução. E tenho de fumar menos por causa do dinheiro. Está muito caro. Ou então tenho de comprar cigarros albaneses ou guatemaltecos.

Então, se isto começar a ter sucesso pode haver uma relação inversamente proporcional do ponto de vista da tua saúde?

(Risos.) A nossa saúde está sempre a deteriorar-se. Misteriosamente, fui fazer exames e está tudo bem. Na espirometria até me deram remédios para eu ficar pior. A senhora disse-me: “Não vai apresentar esta espirometria ao médico. Ele quer ver como é que estão a funcionar os seus brônquios estando mal… como estão óptimos…” E eu: “Mas e precisa de me estar a pôr doente?” E ela deu-me quatro ou cinco bombadas de uma coisa em que, três minutos depois, já estava a arfar aflito, cheio de gatos cá dentro. Um remédio maravilhoso para o mal. Vou comprar aquilo só para dar a inimigos.

Há alguma hipótese de a Poesia Incompleta voltar a meter-se na edição?

Deixa lá estabilizar as contas… Estabilizar, não, pagá-las. Estou aqui há seis meses, e já paguei mais três de renda. Ou seja, paguei nove meses antes de abrir, por causa de burocracias. Deixa lá ver como é que isto corre. Há sempre coisas boas para editar. No outro dia a discutir com um editor que me pedia sugestões, perguntei-lhe se tinha de ser poesia, se tinha de ser de poetas vivos, e às tantas dei-lhe uma resposta de que eu próprio gostei: “Os poetas mortos estão a escrever cada vez melhor.” Há sempre coisas para editar: novas, velhas, portuguesas, estrangeiras…

E quantos livros é que mantiveste da primeira livraria..? Porque os teus livros chegaram a ser enviados para o Brasil num contentor não foi?

Foi uma tonelada. Mas não voltaram. Não veio um livro. Ofereci tudo à Valeska [de Aguirre, poeta brasileira e a sua ex-mulher].

Então o que já tens aqui de livros é um acervo que começaste agora a comprar?

Sim. Comecei em Agosto porque só em Agosto é que pude abrir actividade. Comprei alguns lotes de livros manuseados, livros esgotados, mas de resto é tudo novo. Não guardei stock nenhum, nada. É mais engraçado, é mais arriscado. As livrarias (a maior parte) têm hoje em dia uma atitude muito estranha… Uma espécie de aversão ao risco: “Nós não temos nada de arriscar. Os editores e os escritores é que têm de arriscar. Nós não. Temos aqui o livro 30 dias, 60 dias, se não se vender, devolvemos, até o devolvemos estragado. Devolvemos ainda embalado…” E isto faz-me uma grande impressão, porque acho que a função de uma livraria também é arriscar, também é pôr em destaque o que não está destacado à partida. Quer dizer: pores o Dan Brown em destaque é uma coisa para meninos. É uma livraria feita por pessoas com quatro anos. Ele precisa muito do teu destaque, ninguém se vai lembrar do Dan Brown se tu não o destacares.

Há um conceito, que hoje já começa a ser extraterrestre para as pessoas que só frequentam as Bertrands e as Fnacs, que é razão pela qual te recusas a fazer descontos, a tentar ser competitivo baixando os preços…

Isso é aquela conversa que me interessa muito pouco… Fazem colóquios, fazem certames, fazem debates sobre o livro e a crise do livro e o nhó-nhó-nhó do livro… Há uma lei. Uma lei escrita e em vigor, que se chama Lei do Preço Fixo, e depois há umas cadeias que praticam uma coisa horrível: para não poderem ser acusadas de fazerem dumping (que é ilegal também), exigem uma parte leonina aos editores e, de facto, depois podem fazer 10 e 20% de desconto. Até fazem saldos de livros que ainda nem pagaram, que é uma coisa absolutamente insana. Livros a 1 euro que eles ainda vão pagar. Faz pensar na composição da rua em que estamos. Uma rua que tem um Centro de Saúde, um sapateiro e o Doutor [Eduardo] Catroga, acho que lhe faltava uma livraria de poesia. Estes quatro pilares podem ancorar a sociedade portuguesa. Mas essa conversa do livro chateia-me muito. Primeiro porque há um lado que é quase pedir desculpa… “Temos aqui um livro, mas estamos a fazer 30% de desconto para você o levar, leve-me esta merda! Por amor de Deus, que isto está aqui a ocupar-nos espaço. Até fazemos uma atençãozinha redobrada… Tem cartão cliente? Damos-lhe pontos e ainda lhe fazemos uma colonoscopia no fim. Se comprar 10 livros fazemos-lhe um exame à próstata de graça. Portanto, leve, leve este livro daqui, por favor!” Eu não acredito nisso. Não tem lógica que um bem tão precioso como um livro seja logo desvalorizado à partida. Saiu – já está com 10% de desconto! Eu até posso oferecer o livro a uma pessoa, e fi-lo várias vezes, mas eu não faço descontos.

Porque é que te parece que se criou este erro de percepção?

Nas coisas mais óbvias – isto não é neurociência –, acho que as pessoas não têm muita noção. Não têm no que toca às livrarias. Nos negócios mais simples, mais óbvios, as perguntas que me fizeram sempre são extraordinárias. Acho que há um mistério na forma como as pessoas encaram o funcionamento das livrarias. Mas é natural. Quando tu bombardeias as pessoas durante anos com campanhas e cartões e carimbos – “Ao décimo carimbo damos-lhe um chocho e livramo-nos de mais três livros” –, as pessoas deixam de achar o livro uma coisa preciosa. E o livro é uma coisa preciosa. Cada livro. Um exemplar de um livro que se estraga é criminoso. É papel que se estraga, é o autor, é o designer, é o capista, é o revisor… É muita coisa que se estraga! Mas enquanto perdurarem estes modelos… E eu não sou contra o acesso fácil das pessoas à cultura. Não é isso. Acho é que quando crias uma lógica permanente de descontos, descontos, descontos… depois comprar um livro a preço de capa torna-se uma asneira. “Isto é 10 euros, mas eu assim não compro. Estava à espera de pagar 8.” Olha, vai fazer isso a um talho.

E em relação aos alfarrabistas de Facebook, como vês estes Ubers do meio livreiro que vendem a preços de saldos e enviam por correio?

Acho que há espaço para tudo. Querem ter um alfarrabista em casa, tenham. Mas é a tal coisa: eu como leitor – que sou, primeiro… Depois, acidentalmente, sou livreiro… Por falta de novas oportunidades (risos)… A mim nada me substitui um bom livreiro. Ir ao Luís Gomes [livreiro da Artes e Letras (Av. Elias Garcia 153ª)] ou à Letra Livre, e ouvir deles: “Tens de conhecer isto…” Porque é como se fossem amigos a que podes recorrer sem cerimónia. Eu faço mais cerimónia com os amigos do que com os desconhecidos. Acho que quanto maior é o grau de intimidade mais cerimónia devemos fazer. E tu não vais estar sempre a telefonar para um amigo a perguntar-lhe sobre livros. Mas se for para uma livraria, se eu for perguntar à Eugénia, ao Eduardo e ao Carlos, eles sabem tudo. Como se eu for perguntar a um amigo que é gráfico ou tradutor, eles sabem da profissão deles… Agora, aquilo é o negócio deles, e, por isso, não me sinto constrangido de ir lá perguntar. Depois há uma frase que a minha mãe diz muito: “Todos os dias há pessoas a fazerem 18 anos.” E eu, a partir do momento em que fiz a Poesia Incompleta, corrompi esta frase e passei a dizer que todos os dias há gente a começar uma biblioteca. E acho mesmo que ainda há gente a comprar livros pela primeira vez. Primeiro para a estante do seu quarto, depois já os levam para um outro quarto, e um dia estão a arrendar um espaço para ter onde guardar os livros. E lembro-me de ter um senhor de 90 anos muito contente lá na livraria porque encontrou um livro que ainda não tinha encontrado. Lembro-me do Graça Moura muito contente também com um livro que encontrou finalmente. Do mesmo modo que me lembro de gente de 18, 19, 20, 30 anos, que descobriram o Manuel de Freitas ou o Bocage, muitos poetas estrangeiros, muitas editoras que nunca tinham estado em Portugal. Esse era um motivo de alegria muito grande para mim: uma editora que nunca entrou neste país e o está a fazer por via da minha livraria. Porra, que alegria! Se se diz que antigamente é que era, hoje em dia há mais gente que sabe ler, por isso há aqui um lado de… É sempre possível. Há sempre gente a começar. E como há sempre gente a começar a escrever, e gente a começar a editar, e gente a fazer livrarias ou cafés, também há-de haver sempre gente a começar a comprar os seus livros, gente para quem o Facebook não bastará, gente que percebe que se tu leres um poema ou dois de um poeta não entras no poeta. Isto é ao contrário da maior parte das pessoas que dirá: “Ai, gosto muito do poeta. Li três poemas… Adorei.” Há sempre a possibilidade de aparecer gente que se encanta. Gente de outras áreas: da economia, da engenharia, da arquitectura, de não sei o quê… Que lê! Leitores! É isso o que eu acho que falta. Leitores.