A brandura dos tribunais


O que é um “ambiente de sedução mútua?”. Uma mulher inconsciente seduz alguém? E é sedução o fornecimento sucessivo de bebidas alcoólicas? Como é que se considera haver culpa mediana num caso destes, em que dois funcionários abusam de uma jovem inconsciente, de que tinham o dever de cuidar?


Na cena inicial do filme “O Padrinho”, de Francis Ford Coppola, Amerigo Bonasera, cangalheiro de profissão, encontra-se a falar com o capo da Mafia local, Don Vito Corleone. Nessa conversa, ele revela acreditar na América, onde tinha feito a sua fortuna. Por isso, quando a sua filha tinha sido abusada e brutalmente agredida por dois rapazes, decidira queixar-se à polícia. Os abusadores tinham sido acusados e julgados em tribunal mas, para seu espanto, o juiz aplicara-lhes uma pena suspensa. E assim os dois criminosos saíram imediatamente em liberdade, a rir-se da vítima e dos seus pais destroçados. Por isso, Bonasera decidira ir falar com Don Corleone, pedindo-lhe que fosse ele a fazer justiça. O capo sente-se ofendido por lhe estar a ser feito esse pedido apenas aquele momento, achando que deveria ter sido logo contactado em vez da polícia. Mas, apesar disso, promete a Bonasera levar a cabo a vendetta privada que este solicita, a troco de um favor que mais tarde lhe reclamará.

Essa cena desse filme fez-me sempre encarar com grande desconfiança a suspensão da pena de prisão em crimes desta natureza, que a lei tem vindo cada vez mais a facilitar, e que os nossos tribunais têm vindo a usar excessivamente. Um exemplo desse uso excessivo da suspensão da pena é precisamente o acórdão da Relação do Porto de 27 de Junho de 2018, relativo a um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido no art. 165º, nº2, do Código Penal. Esse acórdão refere-se a um caso em que o barman e o porteiro de uma discoteca abusaram sexualmente de uma jovem de 26 anos, caída no chão da casa-de-banho do estabelecimento, depois de a mesma ter desmaiado por consumo excessivo de álcool, já que lhe tinham oferecido gratuitamente uma série de bebidas. Trata-se de uma situação com um grau elevadíssimo de ilicitude e de culpa, não só por se tratar de abuso sexual praticado por duas pessoas, como também pelo facto de o mesmo ter sido realizado por dois funcionários de um estabelecimento de diversão nocturna, que têm um especial dever de protecção em relação aos clientes desse estabelecimento.

Mas, apesar disso, o tribunal de primeira instância resolveu suspender a pena de quatro anos e meio de prisão, tendo o Ministério Público recorrido, como lhe competia. É de salientar que até 2007 não era permitida a suspensão de uma pena de prisão dessa ordem, tendo sido nessa data que foi alterado o art. 50º do Código Penal para permitir a suspensão de penas de prisão até cinco anos, quando antes só o poderiam ser as penas de prisão até três anos. E devo dizer que a meu ver não faz qualquer sentido que uma pena de quatro anos e meio possa ser suspensa, o que não satisfaz minimamente as necessidades de prevenção geral em crimes desta gravidade.

Mas ainda menos sentido fazem as justificações que foram apresentadas pela Relação do Porto para suspender esta pena. Afirma a Relação do Porto que “a culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos. A ilicitude não é elevada. Não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]”. Lê-se e não se acredita! O que é um “ambiente de sedução mútua?”. Uma mulher inconsciente seduz alguém? E é sedução o fornecimento sucessivo de bebidas alcoólicas? Como é que se considera haver culpa mediana num caso destes, em que dois funcionários abusam de uma jovem inconsciente, de que tinham o dever de cuidar? Não há ilicitude elevada no abuso sexual de uma mulher desmaiada no chão de uma casa-de-banho? E acham que não há danos físicos nem violência no abuso sexual de alguém nessas condições, que terá obviamente repercussões físicas e psicológicas para o resto da vida?

A recusa dos tribunais em punir severamente crimes graves abre a porta ao surgimento de vinganças privadas. De cada vez que um tribunal opta por deixar criminosos violentos em liberdade, possibilita que um qualquer Don Corleone surja ao virar da esquina. Para evitar isso, a repressão penal dos crimes contra as pessoas tem que ser efectiva. Se Portugal é um país de brandos costumes, a verdade é que os nossos tribunais não podem ser brandos em crimes desta ordem. É a preservação do Estado de Direito e a defesa das vítimas que está em causa.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990