Megaprocessos, oportunidade(s), cartas persas e seios


As mulheres procuram cobrir-se bem até aos tornozelos e à ponta dos pés, mas não tanto no colo e nos seios. Bonito, sem dúvida, o que se pode descobrir num belo decote ou numa teimosa legalidade


Aproximando-se o fim da estação tola e a rentrée, aparecem os questionários sobre o que mudar na justiça (há sempre conversas sobre mudança, mesmo que seja para alcançar o que Tancredi explica ao tio em “O Leopardo”) e as previsões do que aí vem, e isto e mais aquilo. Nada de muito novo, ano após ano, sendo que um dos pontos repetidos é o dos chamados megaprocessos. Escrevi aqui há pouco tempo que o princípio da oportunidade seria um tema a pensar. Como é costume, aqui d’el Rei, porque não é para nós, é perigoso, não dá, e quejandos. Pronto, seja, fiquemos então com a celebrada legalidade, e processos gigantes onde tudo se esmiuça (ou não, que há por vezes e em boas mãos institutos que dão para tudo, como a prova indirecta), longos, demorados, volumosos, alguns ingovernáveis, outros letárgicos, um ou outro movido a pingalim que atropela as garantias ou a demagogia que culpa expedientes dilatórios. Este apego à legalidade e o horror à oportunidade faz-me lembrar, por exemplo, a epístola LXXVIII das “Cartas Persas” (há quem prefira o Montesquieu de “Do Espírito das Leis” ao das “Cartas”, eu prefiro este, pois não é menos acertado e é mais divertido). Naquela, Rica envia a Usbek cópia de uma carta que um francês escreve depois de viajar por Portugal e por Espanha, e onde, entre o mais, dá conta de como as mulheres procuram cobrir-se bem até aos tornozelos e à ponta dos pés, mas não tanto no colo e nos seios. Bonito, sem dúvida, o que se pode descobrir num belo decote ou numa teimosa legalidade.

E quem diz oportunidade, diz soluções de justiça negociada, mesmo que sejam só as que já temos na lei (aliás, muitas vezes apontadas como as únicas manifestações de oportunidade que o nosso sistema suporta). Em editorial na revista “Sábado” de 23 de agosto, Eduardo Dâmaso opina sobre o “caso Furacão” em termos que eu – se pudesse falar sobre processos em que intervim (não posso, para além de generalidades ou de detalhes necessários, assim manda um estatuto deontológico de séculos passados) – subscreveria. Mas atenção, aqui ficam, a fechar, duas declarações claras de interesses e um aviso (mas não por causa da moral, como o de Álvaro de Campos), umas e outro a favor das preocupações dos moralistas de pacotilha que veem numa opinião quase sempre um interesse oculto: primeiro, os processos mega e a exasperação litigante dão-me muito mais jeito como advogado, em vez da oportunidade ou de formas negociadas de justiça, numa pura perspetiva de ocupação e rendimento; segundo, na minha ideia de oportunidade, o titular da ação penal escolhe o que quer, e não o que outros lhe imponham ou recomendem. O que, aliás, vai bem com a sua necessária independência – agora, ao que se diz, reforçada em letra de lei. Mas tem que prestar contas, isso tem, e é bom também que se sublinhe que tem hierarquia, e que é preciso e saudável que a hierarquia mande. O que nunca é de mais recordar, e avisar, sobretudo em tempos de balanço e de discussão sobre a recondução ou não da cúpula do MP.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira
 


Megaprocessos, oportunidade(s), cartas persas e seios


As mulheres procuram cobrir-se bem até aos tornozelos e à ponta dos pés, mas não tanto no colo e nos seios. Bonito, sem dúvida, o que se pode descobrir num belo decote ou numa teimosa legalidade


Aproximando-se o fim da estação tola e a rentrée, aparecem os questionários sobre o que mudar na justiça (há sempre conversas sobre mudança, mesmo que seja para alcançar o que Tancredi explica ao tio em “O Leopardo”) e as previsões do que aí vem, e isto e mais aquilo. Nada de muito novo, ano após ano, sendo que um dos pontos repetidos é o dos chamados megaprocessos. Escrevi aqui há pouco tempo que o princípio da oportunidade seria um tema a pensar. Como é costume, aqui d’el Rei, porque não é para nós, é perigoso, não dá, e quejandos. Pronto, seja, fiquemos então com a celebrada legalidade, e processos gigantes onde tudo se esmiuça (ou não, que há por vezes e em boas mãos institutos que dão para tudo, como a prova indirecta), longos, demorados, volumosos, alguns ingovernáveis, outros letárgicos, um ou outro movido a pingalim que atropela as garantias ou a demagogia que culpa expedientes dilatórios. Este apego à legalidade e o horror à oportunidade faz-me lembrar, por exemplo, a epístola LXXVIII das “Cartas Persas” (há quem prefira o Montesquieu de “Do Espírito das Leis” ao das “Cartas”, eu prefiro este, pois não é menos acertado e é mais divertido). Naquela, Rica envia a Usbek cópia de uma carta que um francês escreve depois de viajar por Portugal e por Espanha, e onde, entre o mais, dá conta de como as mulheres procuram cobrir-se bem até aos tornozelos e à ponta dos pés, mas não tanto no colo e nos seios. Bonito, sem dúvida, o que se pode descobrir num belo decote ou numa teimosa legalidade.

E quem diz oportunidade, diz soluções de justiça negociada, mesmo que sejam só as que já temos na lei (aliás, muitas vezes apontadas como as únicas manifestações de oportunidade que o nosso sistema suporta). Em editorial na revista “Sábado” de 23 de agosto, Eduardo Dâmaso opina sobre o “caso Furacão” em termos que eu – se pudesse falar sobre processos em que intervim (não posso, para além de generalidades ou de detalhes necessários, assim manda um estatuto deontológico de séculos passados) – subscreveria. Mas atenção, aqui ficam, a fechar, duas declarações claras de interesses e um aviso (mas não por causa da moral, como o de Álvaro de Campos), umas e outro a favor das preocupações dos moralistas de pacotilha que veem numa opinião quase sempre um interesse oculto: primeiro, os processos mega e a exasperação litigante dão-me muito mais jeito como advogado, em vez da oportunidade ou de formas negociadas de justiça, numa pura perspetiva de ocupação e rendimento; segundo, na minha ideia de oportunidade, o titular da ação penal escolhe o que quer, e não o que outros lhe imponham ou recomendem. O que, aliás, vai bem com a sua necessária independência – agora, ao que se diz, reforçada em letra de lei. Mas tem que prestar contas, isso tem, e é bom também que se sublinhe que tem hierarquia, e que é preciso e saudável que a hierarquia mande. O que nunca é de mais recordar, e avisar, sobretudo em tempos de balanço e de discussão sobre a recondução ou não da cúpula do MP.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira