A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer?


Há quem testemunhe que a teve e a perdeu, há quem narre que a não tinha e a encontrou, a mim nunca me aconteceu nem uma coisa nem outra


Tudo se mistura, tudo se interliga, sempre e só um palimpsesto – parece-me, cada vez mais, estação após estação – , camada sobre camada, fio com fio, mesmo sem perceção disso muitas vezes. A notícia do falecimento de um colega e sócio logo no início de agosto (João Soares da Silva, um daqueles – poucos – advogados marcantes e grandes na profissão) apanha-me na Puglia italiana, mais exatamente a chegar a Bari. Esta é uma cidade onde a cada esquina há um sinal religioso, um oratório, alguma coisa que transborda fé e devoção, mais kitsch ou menos, mais simples ou elaborado, mas sempre com sentimento, parece-me – e, creio, a fotografia que ilustra este texto é um bom exemplo. Um dos nossos sócios – no seu jeito chão e claro de homem de bem -, ao anunciar a todos o falecimento do nosso colega, naquele dia, lembra e invoca a guarda de Deus. E eu sou apanhado, uma vez mais, desarmado na minha falta de Fé.

Fé que nunca tive, pelo que nunca a cheguei a perder ou a colocar em causa. Simplesmente nunca me visitou e muito menos ficou. Há quem testemunhe que a teve e a perdeu, há quem narre que a não tinha e a encontrou, a mim nunca me aconteceu nem uma coisa nem outra. Não sei porquê, mas foi e é assim. Até um dia? Talvez, não sei. Pela mesma altura, leio uma entrevista de Hélia Correia, escritora que tenho por maior, onde ela diz o seguinte, e eu subscrevo sem mudar uma vírgula: “… eu não sou patriota porque tudo isto é fruto do acaso. Um país é um fruto do acaso. O nascimento num país é fruto de um acaso. A própria imposição do cristianismo foi um fruto de um acaso. Se os mouros tivessem ganho uma determinada batalha, isto seria de outra maneira e seríamos diferentes.” E eu acrescento, em jeito de pergunta: Será também a Fé (seja qual for o Deus, deixemos agora isso de lado) fruto do acaso? 

Não sei, que sei eu? Nelson Rodrigues dizia que sempre fora um menino que via o amor pelo buraco da fechadura. Deixando por agora de lado o amor, digo que é assim que tenho visto e vejo a Fé, pelo buraco da fechadura. E não sei se Nelson Rodrigues sentia inveja do que via, eu quase diria que sim do que vejo, não fora o facto de a inveja ser um pecado mortal para a Religião dominante onde o acaso me pôs a nascer. Seja como for, escolhi para titular o texto o título do livro de Stig Dagerman, mas matei a desesperança da sua afirmação ao lhe acrescentar um ponto de interrogação. Às vezes, basta perguntar ou duvidar, isso já é ou pode ser um caminho. Talvez? 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

 


A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer?


Há quem testemunhe que a teve e a perdeu, há quem narre que a não tinha e a encontrou, a mim nunca me aconteceu nem uma coisa nem outra


Tudo se mistura, tudo se interliga, sempre e só um palimpsesto – parece-me, cada vez mais, estação após estação – , camada sobre camada, fio com fio, mesmo sem perceção disso muitas vezes. A notícia do falecimento de um colega e sócio logo no início de agosto (João Soares da Silva, um daqueles – poucos – advogados marcantes e grandes na profissão) apanha-me na Puglia italiana, mais exatamente a chegar a Bari. Esta é uma cidade onde a cada esquina há um sinal religioso, um oratório, alguma coisa que transborda fé e devoção, mais kitsch ou menos, mais simples ou elaborado, mas sempre com sentimento, parece-me – e, creio, a fotografia que ilustra este texto é um bom exemplo. Um dos nossos sócios – no seu jeito chão e claro de homem de bem -, ao anunciar a todos o falecimento do nosso colega, naquele dia, lembra e invoca a guarda de Deus. E eu sou apanhado, uma vez mais, desarmado na minha falta de Fé.

Fé que nunca tive, pelo que nunca a cheguei a perder ou a colocar em causa. Simplesmente nunca me visitou e muito menos ficou. Há quem testemunhe que a teve e a perdeu, há quem narre que a não tinha e a encontrou, a mim nunca me aconteceu nem uma coisa nem outra. Não sei porquê, mas foi e é assim. Até um dia? Talvez, não sei. Pela mesma altura, leio uma entrevista de Hélia Correia, escritora que tenho por maior, onde ela diz o seguinte, e eu subscrevo sem mudar uma vírgula: “… eu não sou patriota porque tudo isto é fruto do acaso. Um país é um fruto do acaso. O nascimento num país é fruto de um acaso. A própria imposição do cristianismo foi um fruto de um acaso. Se os mouros tivessem ganho uma determinada batalha, isto seria de outra maneira e seríamos diferentes.” E eu acrescento, em jeito de pergunta: Será também a Fé (seja qual for o Deus, deixemos agora isso de lado) fruto do acaso? 

Não sei, que sei eu? Nelson Rodrigues dizia que sempre fora um menino que via o amor pelo buraco da fechadura. Deixando por agora de lado o amor, digo que é assim que tenho visto e vejo a Fé, pelo buraco da fechadura. E não sei se Nelson Rodrigues sentia inveja do que via, eu quase diria que sim do que vejo, não fora o facto de a inveja ser um pecado mortal para a Religião dominante onde o acaso me pôs a nascer. Seja como for, escolhi para titular o texto o título do livro de Stig Dagerman, mas matei a desesperança da sua afirmação ao lhe acrescentar um ponto de interrogação. Às vezes, basta perguntar ou duvidar, isso já é ou pode ser um caminho. Talvez? 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira