Guerras fratricidas


As férias são uma oportunidade de os irmãos estarem mais tempo uns com os outros… mas, por vezes, o “caldo” não é fácil de gerir, sobretudo quando todos se engalfinham!


Quando se pensa em filhos únicos, a primeira reação costuma ser de pena. A mim, talvez por ter uma família grande e sempre ter vivido rodeado de irmãos e de sobrinhos, custar-me-ia certamente ser o único em casa e carregar na minha pessoa todas as expetativas dos pais e da família, sem ter com quem partilhar (e disfarçar) os meus defeitos e imperfeições. Quando acima escrevi “costuma” queria dizer isso mesmo, mas todos os costumes têm, por vezes, exceções.

O primeiro foi o João, de 14 anos de idade. Apareceu-me um dia na consulta e, aproveitando um momento em que a mãe foi buscar qualquer coisa, queixou–se amargamente:

“Não pode imaginar o que é. O meu irmão é um chato. Passo-me da cabeça. Não posso estar um bocado sossegado, no meu quarto, que o tipo vem logo meter o nariz nos meus assuntos. Se estou a ler vem fazer barulho para eu ir brincar com ele. Mas será que ele pensa que tenho a idade dele? O doutor já teve irmãos de nove anos? Não se aguenta, palavra, a minha vontade é dar-lhe um murro, mas tenho medo que os pais se chateiem. Imagine que no outro dia dei com ele a espiar os meus telefonemas… não sei se foi por encomenda do pai ou da mãe, mas levou uma corrida que nem queira saber. E depois faz-se de crescido, o imbecil, na idade dele não fazia… não fazia…, não me deixavam fazer metade do que lhe deixam a ele. Se é preciso ir ao supermercado, quando falta alguma coisa, sua excelência não pode ir, é muito novo, podem comê-lo no meio da rua. Trazer as malas ou os sacos quando vimos de viagem? Eu, claro, que o menino é muito frágil e pode cansar-se. Se nos calha pôr a mesa, balda-se e as culpas caem sempre em cima de mim. Falta água na mesa – olha tudo para mim e o fulaninho quase se some pela cadeira, para não darem por ele. Estou farto! A minha vontade é encher-lhe a cara de murros, juro. O pior é que ele é muito pequeno e ainda o desfazia, e depois não paravam de me chatear a cabeça.”

Passados meia dúzia de dias foi a vez da Joana, de 13 anos, nervosíssima.

“Tem irmãos, teve irmãos? De que idade? De certeza que não sofreu tanto como eu. Não sei porque é que os pais tiveram dois filhos [e de repente, lembrando-se que é a mais nova e que, nessa perspetiva, não existiria, corrigiu], porque é que não me tiveram só a mim. Não imagina o que eu passo, não pode imaginar. Pau para toda a obra. Sua excelência põe e dispõe, ordena, e a escrava tem de obedecer. Joana, vai buscar água. Joana puseste mal a mesa – sim, porque sou sempre eu que ponho e o fulano está numa de hotel, cama e roupa lavada. Joana, para de namorar – assim, de propósito, em voz alta para os pais ouvirem quando estou só a saber dos trabalhos de Francês. O menino pode derreter o saldo do telemóvel a telefonar para o Taiti, se quiser, que ninguém diz nada, é crescido, e eu, pum, se falar para um número da minha rede dois minutos, levo logo nas orelhas. Quem escolhe o lugar no carro? Ele. Quem vai despejar o lixo? Eu. Quem tem prioridade para tomar banho? Ele. Quem vai ao supermercado se de repente faltar qualquer coisa? Eu. Acho que irmãos mais novos são escravos disfarçados. Às vezes penso que os meus pais só me tiveram para ser criada daquele badameco. Olhe, doutor, às vezes só me apetece dar-lhe um murro, encher–lhe a cara de murros. O pior é que ele tem o dobro do meu tamanho e desfazia–me em menos de nada! E depois, sempre que quero fazer alguma coisa, dizem que não tenho idade, quando ele é pouco mais velho do que eu, tem 16 anos, e já faz o que quer. Estou farta.”

Já agora, diga-se a talhe de foice que quer o João quer a Joana foram trazidos à consulta pelos pais, por considerarem que eles estavam demasiado “rebeldes” com os respetivos irmãos. “Não se podem aturar”, “não achamos normal”. Ri-me com os meus botões e pensei que quer um quer outro eram extremamente saudáveis. A maior parte dos irmãos são como o cão e o gato, mas não podem passar uns sem os outros. Quem tem dois (ou mais) filhos sabe a nostalgia que vai lá por casa quando um está ausente. É quase uma relação de amor-ódio.

Estes problemas surgem muitas vezes subitamente. “Davam-se tão bem, não entendo o que se está a passar.” Foi o caso dos pais do João e da Joana, que os trouxeram à consulta convencidos de que eles estavam “gravemente doentes”.

Quando são miúdos já lutam, mas vão–se aturando. O pior é quando crescem e os objetivos e estilos de vida começam a ser diferentes. É normal e saudável, e isso raramente leva a violência ou a ruturas.

Há, no entanto, que realçar o papel dos pais. Se os conflitos são normais e símbolo de uma sólida amizade, já a interferência demasiada dos pais ou a sua adesão a uma das partes pode ser injusta e criar um ambiente desagradável e contraproducente, para além de gerar olhares enviesados de um irmão para outro, o que é mau.

Os conflitos fraternais devem ser geridos pelos pais com parcimónia e só devem interferir quando a discussão os está a incomodar, quando se arrasta e já não há argumentos novos, quando há um desequilíbrio de forças grande ou quando a situação é francamente óbvia para algum dos lados. De qualquer forma, o que deve estar em causa é a forma de sanar os problemas e não tomar partido descarado e, pior ainda, quando esse partido é baseado em provas unilaterais ou tomba sempre para o mesmo lado.

O papel de balança dos pais com filhos adolescentes é muito importante e deve ser mantido. Se o ambiente está carregado, há que desanuviá-lo. Uma no cravo, outra na ferradura é a melhor política, com tolerância e compreensão pelos argumentos de cada um, ouvindo-os separadamente quando o assunto é grave; ignorando o caso e mandando discutir para longe onde não incomodem quando o assunto é (como é quase sempre) um problema de lana-caprina. Quem gosta de ver filmes americanos passados em tribunal geralmente irrita-se com os juízes que sistematicamente interferem no papel dos advogados e toma partido pela acusação ou pela defesa. Pais: o vosso papel é esse, administradores da justiça.

Pois é. Costumo ter pena dos filhos únicos, até porque nem sei muito bem o que seria ser filho único. Ao ouvir o João e a Joana, trazidos à consulta de uma forma um bocado ad hoc, ainda fiquei mais com essa ideia. Que seria deles se não tivessem os irmãos? O tal “diabinho” de 9 anos e o tal “ogre” de 16? Provavelmente, não teriam metade da vivacidade com que me contaram as suas “agruras” nem um quarto da alegria de viver.

P. S. Quais os critérios que levam um ministro da Saúde a visitar um doente no hospital? Se é na condição de ministro, gostava de saber as suas escolhas. Se é como amigo, não tem de ser notícia nos média… sobretudo quando esses internamentos acontecem, segundo a DGS, a 12 mil portugueses todos os anos. Ah, senhores jornalistas: a “intervenção cirúrgica cardíaca de urgência” (que dá o toque dramático à notícia) é o que se faz, por rotina, nestas situações: a desobstrução das coronárias e a colocação de stents através de cateterismo. É uma urgência e quanto mais depressa for feito, melhor. Seria mais apropriado, então, os jornalistas mencionarem os sintomas que fazem pensar estar-se perante um enfarte – isso sim, permitiria salvar mais vidas. Enfim… para os média são minudências. Mas o que realmente importa é que melhore rapidamente, colega!

 

 

Pediatra. Escreve à terça-feira