Pela segunda vez, escolhi um hospital público para ter a minha filha. Não vale a pena nomear, só queria agradecer aos muitos que continuam a dar o litro apesar das dificuldades.
Agradecer à minha médica, que dá um testemunho de dedicação ao trabalho, de energia, boa disposição e uma preocupação genuína com cada um e com a saúde pública. Faz clínica privada, mas no público encontrei-a sempre com a mesma entrega incansável que só uma grande paixão pelo trabalho pode alimentar.
Agradecer ao enfermeiro obstetra que nos acompanhou. Nem todos os profissionais com quem nos cruzamos são simpáticos, às vezes, devo dizer, tiram-nos do sério. Não faço ideia se nos hospitais privados existirá mais atenção – se calhar, reclamamos com mais à-vontade. Quando estamos com dores pode ser exasperante se dizem que vão trazer um copo de água e passa meia hora ou mais, ou se “é só um bocadinho” que já deixam o nosso acompanhante entrar e o bocadinho nunca mais passa. Mas voltando ao enfermeiro obstetra que felizmente entrou em cena, e que acompanhou praticamente sozinho todo o trabalho de parto, o que me impressionou não foi apenas a simpatia, mas a segurança que transmitiu em cada momento, a calma com que ia corrigindo a forma de respirar e desfazendo os medos, ajudando a tornar a dor mais eficiente. E como, ao amanhecer, já depois de o bebé nascer e quando podia estar cansado ou sem pachorra, nos mostrou os detalhes da placenta e as ramificações de vasos sanguíneos que algumas pessoas pedem para decalcar para uma folha, como se fosse um stencil, para ficarem com uma recordação da “árvore da vida”. E como naquela discussão sobre mais ou menos epidural disse de forma tranquila que, numa situação normal, o parto ideal é aquele com que nos sentimos confortáveis, e cabe-lhes apenas apoiar esse projeto. Foi, para mim, o testemunho do verdadeiro SNS, centrado na pessoa, que tantas vezes se discute e tantas vezes não passa da teoria.
Quero agradecer ao pessoal do puerpério. Não vale a pena negar que existe desalento e sobrecarga. Bastam dois dias internado para ouvir conversas sobre turnos e mais turnos seguidos, falta de pessoal, cansaço, braços que não chegam para tudo. São muitas as caras com que nos cruzamos, mas retenho uma que, em parte, significa futuro. Uma estudante de Enfermagem que apanhei nas duas noites nunca esquecia a abordagem humana, sempre com uma palavra simpática e de incentivo para as mães do quarto, um trato caloroso que pode não ser o mais importante do ponto de vista clínico, mas faz toda a diferença na forma como nos sentimos acompanhadas.
Por fim, agradecer ao cantinho da amamentação. No meio de tudo o que têm a fazer, há quem se esforce por criar espaços e projetos que concretizam aquilo que são as boas práticas em termos de saúde maternoinfantil, mesmo que para isso seja preciso fazer esticar o tempo.
Não é tudo perfeito no SNS, longe disso. Um nascimento será um dos melhores motivos para ter de estar hospitalizada, o que ajuda a ter uma visão mais otimista. Enquanto escrevo, um familiar espera há mais de uma semana num hospital para fazer um exame. Não há médico para a sedação. Na primeira noite ficou numa maca no corredor. Na segunda ia acontecer o mesmo.
Não vale a pena aguentar o SNS só porque sim ou este SNS que volta e meia bloqueia, que tira energia aos doentes, famílias e profissionais. Enquanto utente, acredito que, enquanto país, temos de dar um bocadinho mais para tornar o SNS mais forte, mas isto não pode ser um jogo de palavras – tem de ser um compromisso forte que torne impossível esperar mais de um ano por uma consulta ou exame ou que um exame seja adiado consecutivamente. Senão, começa por ser um incómodo, um mau serviço, e dentro de uns anos, com o peso do envelhecimento e da tecnologia, será simplesmente inviável.
Quando fui esta semana inscrever a mais nova no centro de saúde para o teste do pezinho, o administrativo fez questão de anunciar que já tínhamos médico de família. Já sabia, respondi-lhe. Tive a primeira consulta na semana passada para pedir uma baixa pré-parto, mas a miúda acabou por nascer no mesmo dia. “Devia ter jogado no Euromilhões”, sorriu o funcionário. Pela pontaria, mas também pela médica – ainda há 20 mil pessoas à espera no meu centro de saúde. Dar com o lado bom do SNS não pode continuar a ser uma questão de sorte.
Jornalista
Escreve à sexta-feira