MOSCOVO – O futebol pode ser poesia. Ou prosa. Não devia era ser nunca reduzido à aritmética. Ou aos números de telefone.
4.4.24.3.35.3.2? Como antigamente dizia um anúncio televisivo: “Me liga vai!” (Liguem e verão se alguém vos atente. O futebol não, com certeza.)
Quando Torga escreveu – “joga a bola menino/Dá pontapés certeiros/Na empanturrada imagem deste mundo/Traça no firmamento/Órbitras arbitrárias/Nas quais os astros fingidos/Percam a majestade” – é a poesia que sai ao encontro da bola ou a bola que sobe ao topo da poesia?
Eu pergunto, mas não sei responder…
Claro que consigo ouvir, ao longe, lá no fundo da sala, aquela desconfiança traduzida em mugido sarcástico:
“Huummm…”
Mas que huummm? Li tantas páginas de tantos poetas sobre futebol, tantas!
Carlos Drummond de Andrade, por exemplo: “Futebol se joga no estádio?/Futebol se joga na praia/futebol se joga na rua/futebol se joga na alma”.
E a voz, teimando: “Não vale, é brasileiro”.
Puxo do Vinicius: “A um passe de Didi, Garrincha avança/Colado o couro aos pés, o olhar atento/Dribla um, dribla dois, depois descansa/Como a medir o lance do momento”.
A voz, outra vez: “Brasileiro! Não vale! Tudo quanto é sul americano mete bola na escrita”.
Teimo com Fernando Pessoa. Ele gostava de futebol.
Certa vez decidiu fazer-se passar por médico de si mesmo e estabeleceu correspondência com um antigo professor que o ensinara, em Durban, na África do Sul da sua adolescência. O mestre respondeu-lhe, via falso médico: “Nunca se dedicou a nenhum desporto. Era demasiado solitário. Mas passava horas entretido a ver os colegas disputando jogos de futebol, embora sem participar”.
Tanto assim que viria a ser ele a inventar os matraquilhos, embora nunca tivesse patenteado a invenção e ela acabasse por ir parar às mãos de um catalão.
A voz: “Ora, ora, Pessoa era um contemplativo. Olhava para os colegas a jogar e nem os via, via rebanhos como Caeiro…”
O meu querido amigo Manuel Alegre: “Buscava o golo mais que golo-/só palavra/Abstracção/ponto no espaço/teorema/Despido do supérfluo rematava/E então não era golo -/era poema”.
Ninguém faz calar a irritante vozinha: “Ora, o Manel é da Académica e do Benfica, até teve um tio que foi fundador do Beira-Mar e do Belenenses, huummm…”
Muito bem. E então o Botto? Sim, o António Botto? Queres ver que também não vale, o António Botto, hein? Francamente! Não é por nada, mas o Botto…
“A bola, rápida, cai /Passando/Por entre os braços erguidos/Do garboso jogador./Palmas, delírio – grandeza! /Alguém atira uma rosa/Para os ‘onze’ vencedores…/E ao longe o sol agoniza /Numa boêmia de cores”.
Acho que deixei de ouvir, mesmo que muito lá no fundo, a vozinha que se nega ao futebol na poesia.
“Futebol se joga na alma!”
O futebol está na alma. Depois, parte-se dele para tudo o mais desde que não seja a irritante matemática.
A poesia está por todo o lado. Já vi tanta poesia em campos de futebol, com métrica e sem métrica, com rima e sem rima. Mesmo neste Mundial russo que quis afastar os Monarcas dos Campeonatos do Mundo o mais depressa que pôde.
“Em lugar nenhum do mundo se dá tanta importância à poesia”, dizia Osip Mandelstam. “Somente na Rússia se fuzila por causa de um verso”.
Fizilaram Nikolai Gumilev, o poeta da Salvação dos Lobos, marido de Akhmatova, nas ruas de Petrogrado, já não Sampetesburgo, ainda não Sampetesburgo. E o povo murmurou pelas esquinas: “Ousaram mesmo fazer isso??? Massacraram a poesia???”
Massacraram a poesia. Se os deixam, massacram tudo.
E também nos massacram o futebol tirando-lhe a poesia que lhe dá vida…