O Tinder e outras faltas de intimidade


Anda uma geração à procura de redescobrir a ideia de intimidade. Num tempo em que mostrar o corpo se tornou tão mais fácil, é a intimidade que parece faltar a quem chega ao mundo adulto


As deambulações sem nexo pelos canais de televisão acabam por nos deixar perante objetos excêntricos da produção atual do pequeno ecrã. Primeiro foi “Naked Attraction”, programa britânico de encontros que começa por despir toda a gente para que haja dois que se escolhem com vontade de transformar essa escolha num encontro vestido e, se calhar, com futuro.

Desta vez trata-se de uma proposta italiana com nome em inglês: “Undressed”. Com a mesma vontade: quebrar barreiras, fazer descer as armaduras sociais, deixar entrever o que está para lá da persona comunitária. Aqui, as pessoas despem-se, mas ficam de roupa interior. Ao invés do talho de carne humana para um potencial encontro do programa inglês, aqui, a intimidade prolonga-se com as duas pessoas na cama. E quase sempre heterossexuais.

Nesse aspeto, “Naked Atraction” é completamente deste tempo, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transgénero, quem vai escolher decide o que quer. Enquanto “Undressed” é mais conservador -– a maioria dos casais são um homem e uma mulher na cama (às vezes, duas pessoas do mesmo sexo), num cenário despido, as luzes coadas, as imagens projetadas no ecrã (sejam elas memórias dos participantes, sejam beijos apaixonados), ecrã esse onde surgem as indicações dadas aos concorrentes para quebrarem o gelo, vencerem as barreiras de proteção e deixarem que ambos deem a conhecer algo de si. Olhos nos olhos, um abraço, um beijo.

Num dos programas, uma jovem mulher napolitana com vontade de ser jornalista ou blogger vai comentando, em apartes gravados sozinha, a ausência de romantismo do par que lhe calhou, um licenciado em Direito que não para de falar. Aquilo que ela queria, um homem que a seduzisse, a arrebatasse, lhe fizesse deixar cair a máscara social, é algo que para o homem atual pode trazer-lhe problemas se não conhece bem com quem está a lidar.

Se o sexo se normalizou, tornando-se expressão normal das vontades físicas que todos temos, a verdade é que os relacionamentos também perderam a carga de intimidade de antes. O sexo é sexo, não se confunde com amor. Pode ser expressão deste, mas as duas coisas não precisam de estar ligadas. E com isso anda agora toda uma geração em busca de intimidade.

Aquilo que está para lá do sexo, que pode ser sem rosto e sem nome, ao contrário do amor, que precisa de mais. O sexo é líquido, coisa de fluidos; o amor é gasoso com necessidade de solidez. Para o sexo não são precisas grandes apresentações – domina o lado animal (como canta Rita Lee, “Sexo vem dos outros/ E vai embora/ Amor vem de nós/ E demora”) –, o que está para além disso precisa de mais alguma coisa, conhecer, saber, perceber, entender, coisas em comum.

A sociedade evoluiu, estamos mais atentos aos abusos sobre o outro, ao assédio, à violação, ao exercício bárbaro da violência doméstica, mas à medida que estabelecemos barreiras em torno de cada um de nós e colocamos sinais de que qualquer invasão desse espaço sem autorização pode trazer graves consequências, perdemos em consequência disso o extemporâneo, o risco.

Hoje, o beijo “roubado” perdeu as aspas e pode tornar-se caso de polícia. Cabe a quem o beijo foi roubado apresentar ou não queixa na polícia. Daí que sejam menos aqueles que ousam arriscar um beijo (homem ou mulher), saltar o muro e arriscar entrar no espaço do outro.

Há estudos nos EUA que mostram que estamos a criar gerações de homens e mulheres com dificuldades em lidar com a intimidade. Como os professores temem ser processados por condutas impróprias e mesmo coisas mais graves, como pedofilia, evitam qualquer contacto físico. Os abraços vão escasseando e as pessoas deixam de saber como lidar com o contacto físico, deixam de perceber onde está o limite do aceitável e começa o do crime, e julgam que tudo é impróprio.

Somos homens digitais, capazes da intimidade informática, praticantes do sexting, da partilha de fotografias dos órgãos genitais, de nos exibirmos para uma webcamera, mas desconjuntados nas relações pessoais, na partilha do espaço íntimo, no tato, no contacto direto. Como escreve Byung Chul-han, “os habitantes digitais da rede não se reúnem. Falta-lhes a intimidade da reunião capaz de produzir um nós. Formam uma concentração sem reunião, uma multiplicidade sem interioridade, sem alma ou sem espírito”.

Na verdade, como explica o filósofo sul-coreano, estamos a caminho de nos tornarmos hikikomori, um termo japonês que quer dizer literalmente “isolado em casa” e define esses indivíduos que se fecham em casa e se relacionam com o mundo através do terminal do computador.

Se esta geração Tinder sabe tudo o que há para saber sobre sexo e como o obter, sabe escolher um parceiro deslizando o dedo para a direita no ecrã e rejeitar sem remorsos para a esquerda, ela lida mal com os limites da intimidade do outro, e como tem dificuldade em identificar sinais, a julgar pela produção televisiva, começa a sofrer problemas de intimidade. Como diz Byung Chul-han, “o que caracteriza a ordem da sociedade atual não é tanto a multidão como a solidão”.