Tinha 17 anos quando fechou a Feira Popular de Lisboa. Vivi sobretudo a reta final, mas ainda passei lá uns bons bocados da primeira liberdade da adolescência. Andava nos escuteiros ali ao lado, nas Forças Armadas, e aos domingos saíamos da missa e íamos sentar-nos naquelas esplanadas meio decadentes meio kitsch, com cheiro a caracóis, sardinhas e frango no churrasco, a planear coisas e a dizer disparates até se fazer hora de almoço. Lembro-me das montras com artigos de campismo, tudo parado no tempo há muito tempo, ou pelo menos assim parecia.
Mesmo assim, ou se calhar por parecer ser um sítio só nosso – não havia assim tanta gente ao domingo de manhã –, era um lugar bom para estar quando chegava o calor, mais do que um “bom” parque de diversões, embora tivesse ido às diversões umas quantas vezes.
Lembro-me da montanha-russa, a primeira montanha-russa de qualquer miúdo daquela zona de Lisboa. Do medo daquele divertimento alto cor-de-rosa que era o que dava mais pica e nos deixava lá em cima de cabeça para baixo. Evolution, acho. Da vez em que um amigo partiu os óculos no Top Gun. Da casa assombrada, com as teias de aranha e morcegos e aquele homem que a certa altura corria atrás de nós com um machado ou um facalhão. Das cadeirinhas que voavam, da sala dos espelhos. Daquela cara onde se metia a mão para nos lerem a sina.
Esta semana, a CML relançou os planos para o futuro projeto urbanístico de Entrecampos, que há anos pressupõe que a feira abra noutro lado – em Carnide, segundo o projeto em curso. Nos planos de Medina cabem hoje 700 fogos com rendas acessíveis, ou não fosse esse um dos dilemas da atualidade na capital. Apesar de ter crescido em parte no centro de Lisboa, sobretudo aos fins de semana, nunca tive o desejo de viver ali, muito menos a qualquer custo. Percebi cedo que estando na Amadora ou ali no meio da Linha de Sintra, em dez/quinze minutos chegamos a qualquer lado sem chatices. Claro que gostava de uma casinha naquele eixo, na Av. de Madrid dos meus avós, mas sobretudo por essa ligação emocional. “Um T0 ou T1 poderá custar 150 ou 200 euros”, anunciou o autarca sobre a futura microcidade de Entrecampos, o que será sempre o privilégio de apenas algumas pessoas. A ideia é manter um plano como desenhou Souto de Moura para os terrenos, tudo moderno e verdejante como deve ser uma zona residencial e de serviços numa capital cosmopolita. Sinónimo de um lugar cada vez mais sem comunidade, descaracterizado.
A nostalgia é tramada e não leva a lado nenhum, mas esta semana, com isto da nova Entrecampos, regressei a esse ambiente eufórico da feira, as primeiras imperiais – tangos, mais provavelmente –, o cheiro a algodão-doce, as tiradas dos senhores dos carrinhos de choque. As maçãs do amor e as pipocas às cores. Gastar moedas a tentar ganhar bonecos – coisa que me ficou no subconsciente provavelmente desse tempo, já que sempre que montam uma feira perto de casa faço questão de ir tentar ganhar uns peluches a derrubar latas com bolas de ténis ou a abrir daquelas rifas que dão sempre prémio, para ganhar bonecos que compraríamos com o mesmo dinheiro e ainda sobrava sem termos de nos dar ao trabalho.
Tal como os prédios novos, quando a feira abrir noutro lugar será provavelmente um parque de diversões moderno e assético, daqueles que cabem em qualquer cidade ou arredores e em que as mesas não têm a cor gasta de anos e anos ao sol. E não há caracóis e frango, mas cachorros e hambúrgueres em linha de montagem – ou rulotes e vespas de street food, como agora se impõe.
Nada contra: como qualquer amante de montanhas-russas e demais divertimentos, já me meti à estrada para ir à Isla Mágica ou ao Parque Warner, perto de Madrid. E já voltei à Eurodisney em adulta. Não são sítios de estar mas de consumo, e vamos nesse estado de espírito, de aproveitar tudo a que temos direito. Com as coisas como estão, provavelmente será daqueles sítios impossíveis da cidade em que rapidamente percebemos que não foi grande ideia pensar que poderíamos ser felizes outra vez. Todos gostamos de voltar a ser miúdos e a ressaca da feira vai sendo grande: quando há uns meses tentei ir à roda gigante daquele mercado de Natal no Parque Eduardo vii, não só demorei mais de uma hora a estacionar como desisti depois de perceber que a fila era coisa para horas. Passaram-me logo as saudades, mas de vez em quando voltam. Não sei se da feira ou do tempo que tínhamos para nos deixarmos simplesmente estar aos 17.
Jornalista, Escreve à sexta-feira