A honra perdida do Partido Socialista


A direita, em vez de aplaudir, bateu palmas de tango à pusilanimidade do presidente e de outros dirigentes do PS, acusando-os de verterem “lágrimas de crocodilo” e de se terem atrasado quase uma década a trair a sua honra e os seus princípios


deveras significativo o “anticomunismo primário” generalizado que insidiosamente transparece no fanatismo brutal e irracional com que jornalistas, comentadores e políticos de direita atacam todos os dias o actual governo e o conjunto das esquerdas. Foi a constatação deste facto, inequívoco e óbvio, que infelizmente não coube na “percepção” que o presidente do PS, Carlos César, e outros dirigentes do partido tão hipócritas como ele “adquiriram face ao adensamento de uma situação que, por via das acusações a Manuel Pinho, se tornou muito evidente na sociedade portuguesa”. O que Carlos César quis assim dizer, urbi et orbi, foi que só através de Manuel Pinho é que conseguiu “envergonhar-se” e ter “raiva” de José Sócrates, três anos depois de iniciado o processo contra este e cerca de sete anos após o termo da sua governação – uma governação que, aliás, Carlos César se atreveu a elogiar, um dia depois de se ter “envergonhado” e enchido de “raiva”, em declarações à imprensa na Sala dos Passos Perdidos da Assembleia da República. Passos Perdidos que condizem perfeitamente com a honra perdida do PS, que optou por sacrificar a coerência política e a dignidade cívica em proveito de uma direita a esfregar as mãos de satisfação…

Ora, como era de prever, essa direita, em vez de aplaudir, bateu palmas de tango à pusilanimidade do presidente e de outros dirigentes do PS, acusando-os de verterem “lágrimas de crocodilo” e de se terem atrasado quase uma década a trair a sua honra e os seus princípios, “envergonhando-se” como virgens – ou terá sido como viúvas?! – ofendidas. A direita não se compadece com os seus adversários políticos, que costuma tratar como se fossem inimigos a abater. A direita sempre julgou que só ela é que tem legitimidade – natural, sobrenatural ou divina – para exercer o poder temporal, e que a esquerda, mesmo quando o alcança por via de eleições democráticas, está a usurpar privilégios que não são dela e que o “direito divino” atribui exclusivamente à direita.

E, no entanto, António Costa, secretário–geral do PS e primeiro-ministro, começou por definir publicamente a posição mais sensata em relação ao processo em curso contra José Sócrates: “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. 

Durante os últimos dois anos, dirigentes e militantes do PS conseguiram respeitar este critério básico, definido precisamente para impedir aquilo que o actual presidente e outros dirigentes do partido acabaram por fazer, facilitando o recurso ao amálgama que a direita estava mortinha por “implementar”: julgar politicamente José Sócrates e Manuel Pinho como se fossem membros do actual governo. E o que é mais curioso é que já surgiram, em vários jornais, comentadores ditos ou oriundos da esquerda – que se julgam pitonisas e não passam de juristas de aviário – a explicar aos nativos deste país que o facto de ainda não existir acusação formal, julgamento e sentença contra José Sócrates e Manuel Pinho não impede que o PS faça o seu julgamento político e profira uma sentença condenatória. Um mimo! Que só podia agradar à direita e, mais ainda, ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que é um “mergulhador no Tejo com diplomas e medalhas de salvação” (da direita), tal como se apresentavam outrora os antigos banheiros das praias de Portugal. Não deixa, aliás, de ser curioso que o actual PR – que “colou António Costa a José Sócrates” quando era o comentador mais perverso e velhaco de todos os canais de TV – tenha “suspirado de alívio” com “esta guinada na estratégia da cúpula socialista face ao processo Sócrates, quando perceberam que se deixassem alastrar o silêncio só perdiam votos” – como escreveu no “Expresso” a correspondente em Belém, Ângela Silva. Nem lhes ocorreu que pode suceder o contrário (e, se lhes ocorreu, é o cúmulo da dissimulação e da hipocrisia) acaso muitos dos eleitores actuais e potenciais do PS se lembrem daquela máxima segundo a qual “Roma não paga aos assassinos dos seus generais”… 

Maio é um mês que acolhe o melhor e o pior em termos históricos. Claro que se pode dizer exactamente o mesmo de todos outros meses do ano! Mas é verdade que, pelo menos desde o Maio de 1968, em França, parece ser um mês propício a todo o tipo de oportunismos, abdicações, reviravoltas e traições absolutamente execráveis, sob todos os pontos de vista: pessoal, político, ideológico ou ético. Em tempo de comemorar o cinquentenário desse Maio de 1968, convirá salientar que ele foi uma grande “fábrica” de “renegados” que fizeram a sua “abdicação” a partir do “maoismo”, da “esquerda proletária” e de outros grupúsculos extremistas, rumo à direita mais conservadora e reaccionária, substituindo as pedras da calçada que arremessaram contra a polícia de choque por uma acrisolada devoção à ordem estabelecida – ao establishment que lhes piscou o olho, devorou a alma e integrou no sistema -, tornando-se todos eles, desde então: peritos em vociferações filosóficas, ideológicas, políticas e justiceiras contra as esquerdas, sejam elas quais forem; e, por essa via, cães de guarda dos plutocratas e políticos de direita que os perfilharam e apadrinham o seu sustento. Foram, em suma, obreiros duma “contra-revolução” – como a eles se referiu Régis Debray dez anos depois, em 1978 – que rapidamente se desfizeram do “colarinho à Mao” e se passaram para o “Rotary Club”, para citar o título da “Lettre ouverte à ceux qui sont passés du col Mao au Rotary”, publicada por Guy Hocquenghem em 1986.

Há vários exemplares deste jaez em Portugal, na política e no jornalismo, todos eles encostadíssimos à direita e fazendo a propaganda dela. Claro que a direita chama um figo e dá guarida a todos esses oportunistas e renegados, sempre dispostos a servi-la – mas não por um prato de lentilhas ou dez reis de mel coado, que eles agora só bebem do fino e não são assim tão baratos, nem andam a trair só para se divertirem. Além do dinheiro, do poder e dos privilégios, o seu carburante é, sobretudo, a enorme necessidade que sentem de, por um lado, amaldiçoar e exorcizar as esquerdas de onde vieram e, por outro lado, exceder-se no zelo com que servem os novos amos e patrões ideológicos, políticos e financeiros, que fazem deles uma fanática tropa de choque que alimente o ódio a todas as esquerdas e exalte os “feitos” mais desprezíveis e sujos da direita. Esses cães de guarda são bem conhecidos e estão activos em Portugal.


A honra perdida do Partido Socialista


A direita, em vez de aplaudir, bateu palmas de tango à pusilanimidade do presidente e de outros dirigentes do PS, acusando-os de verterem "lágrimas de crocodilo" e de se terem atrasado quase uma década a trair a sua honra e os seus princípios


deveras significativo o “anticomunismo primário” generalizado que insidiosamente transparece no fanatismo brutal e irracional com que jornalistas, comentadores e políticos de direita atacam todos os dias o actual governo e o conjunto das esquerdas. Foi a constatação deste facto, inequívoco e óbvio, que infelizmente não coube na “percepção” que o presidente do PS, Carlos César, e outros dirigentes do partido tão hipócritas como ele “adquiriram face ao adensamento de uma situação que, por via das acusações a Manuel Pinho, se tornou muito evidente na sociedade portuguesa”. O que Carlos César quis assim dizer, urbi et orbi, foi que só através de Manuel Pinho é que conseguiu “envergonhar-se” e ter “raiva” de José Sócrates, três anos depois de iniciado o processo contra este e cerca de sete anos após o termo da sua governação – uma governação que, aliás, Carlos César se atreveu a elogiar, um dia depois de se ter “envergonhado” e enchido de “raiva”, em declarações à imprensa na Sala dos Passos Perdidos da Assembleia da República. Passos Perdidos que condizem perfeitamente com a honra perdida do PS, que optou por sacrificar a coerência política e a dignidade cívica em proveito de uma direita a esfregar as mãos de satisfação…

Ora, como era de prever, essa direita, em vez de aplaudir, bateu palmas de tango à pusilanimidade do presidente e de outros dirigentes do PS, acusando-os de verterem “lágrimas de crocodilo” e de se terem atrasado quase uma década a trair a sua honra e os seus princípios, “envergonhando-se” como virgens – ou terá sido como viúvas?! – ofendidas. A direita não se compadece com os seus adversários políticos, que costuma tratar como se fossem inimigos a abater. A direita sempre julgou que só ela é que tem legitimidade – natural, sobrenatural ou divina – para exercer o poder temporal, e que a esquerda, mesmo quando o alcança por via de eleições democráticas, está a usurpar privilégios que não são dela e que o “direito divino” atribui exclusivamente à direita.

E, no entanto, António Costa, secretário–geral do PS e primeiro-ministro, começou por definir publicamente a posição mais sensata em relação ao processo em curso contra José Sócrates: “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. 

Durante os últimos dois anos, dirigentes e militantes do PS conseguiram respeitar este critério básico, definido precisamente para impedir aquilo que o actual presidente e outros dirigentes do partido acabaram por fazer, facilitando o recurso ao amálgama que a direita estava mortinha por “implementar”: julgar politicamente José Sócrates e Manuel Pinho como se fossem membros do actual governo. E o que é mais curioso é que já surgiram, em vários jornais, comentadores ditos ou oriundos da esquerda – que se julgam pitonisas e não passam de juristas de aviário – a explicar aos nativos deste país que o facto de ainda não existir acusação formal, julgamento e sentença contra José Sócrates e Manuel Pinho não impede que o PS faça o seu julgamento político e profira uma sentença condenatória. Um mimo! Que só podia agradar à direita e, mais ainda, ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que é um “mergulhador no Tejo com diplomas e medalhas de salvação” (da direita), tal como se apresentavam outrora os antigos banheiros das praias de Portugal. Não deixa, aliás, de ser curioso que o actual PR – que “colou António Costa a José Sócrates” quando era o comentador mais perverso e velhaco de todos os canais de TV – tenha “suspirado de alívio” com “esta guinada na estratégia da cúpula socialista face ao processo Sócrates, quando perceberam que se deixassem alastrar o silêncio só perdiam votos” – como escreveu no “Expresso” a correspondente em Belém, Ângela Silva. Nem lhes ocorreu que pode suceder o contrário (e, se lhes ocorreu, é o cúmulo da dissimulação e da hipocrisia) acaso muitos dos eleitores actuais e potenciais do PS se lembrem daquela máxima segundo a qual “Roma não paga aos assassinos dos seus generais”… 

Maio é um mês que acolhe o melhor e o pior em termos históricos. Claro que se pode dizer exactamente o mesmo de todos outros meses do ano! Mas é verdade que, pelo menos desde o Maio de 1968, em França, parece ser um mês propício a todo o tipo de oportunismos, abdicações, reviravoltas e traições absolutamente execráveis, sob todos os pontos de vista: pessoal, político, ideológico ou ético. Em tempo de comemorar o cinquentenário desse Maio de 1968, convirá salientar que ele foi uma grande “fábrica” de “renegados” que fizeram a sua “abdicação” a partir do “maoismo”, da “esquerda proletária” e de outros grupúsculos extremistas, rumo à direita mais conservadora e reaccionária, substituindo as pedras da calçada que arremessaram contra a polícia de choque por uma acrisolada devoção à ordem estabelecida – ao establishment que lhes piscou o olho, devorou a alma e integrou no sistema -, tornando-se todos eles, desde então: peritos em vociferações filosóficas, ideológicas, políticas e justiceiras contra as esquerdas, sejam elas quais forem; e, por essa via, cães de guarda dos plutocratas e políticos de direita que os perfilharam e apadrinham o seu sustento. Foram, em suma, obreiros duma “contra-revolução” – como a eles se referiu Régis Debray dez anos depois, em 1978 – que rapidamente se desfizeram do “colarinho à Mao” e se passaram para o “Rotary Club”, para citar o título da “Lettre ouverte à ceux qui sont passés du col Mao au Rotary”, publicada por Guy Hocquenghem em 1986.

Há vários exemplares deste jaez em Portugal, na política e no jornalismo, todos eles encostadíssimos à direita e fazendo a propaganda dela. Claro que a direita chama um figo e dá guarida a todos esses oportunistas e renegados, sempre dispostos a servi-la – mas não por um prato de lentilhas ou dez reis de mel coado, que eles agora só bebem do fino e não são assim tão baratos, nem andam a trair só para se divertirem. Além do dinheiro, do poder e dos privilégios, o seu carburante é, sobretudo, a enorme necessidade que sentem de, por um lado, amaldiçoar e exorcizar as esquerdas de onde vieram e, por outro lado, exceder-se no zelo com que servem os novos amos e patrões ideológicos, políticos e financeiros, que fazem deles uma fanática tropa de choque que alimente o ódio a todas as esquerdas e exalte os “feitos” mais desprezíveis e sujos da direita. Esses cães de guarda são bem conhecidos e estão activos em Portugal.