Construir a democracia onde caiu a ditadura


A democracia não está segura. Mais do que nunca, o espírito de Abril fez sentido. Em Portugal e na Europa. Os democratas têm de abandonar as trincheiras e combater pela liberdade


Podemos celebrar o 25 de Abril de duas maneiras: recordando a História ou fazendo a História; evocando a liberdade ou construindo a liberdade. Em Cascais, os 44 anos da revolução assinalam-se das duas formas. Respeitamos o passado, mas olhamos o futuro. Entendemos que é esse, afinal, o intemporal apelo à ação que Abril legou aos democratas. O edifício da liberdade, da solidariedade e dos direitos dos homens não é uma obra acabada. Exige esforço contínuo e resiliente de preservação.

A democracia não se faz com complacência. Talvez seja esse, no fim de contas, o grande mal das democracias do nosso tempo e a justificação para a crise que as fustiga. Por todo o lado se tomou a liberdade como garantida. Os direitos como inalienáveis. O progresso individual como constante. As tecnologias como meio de libertação. A acumulação como sentido da vida. Os contratempos como um anacronismo. Mas os contratempos são certos como o destino. Destinado estava que chegariam. E com eles chegou também o descontentamento. Com o descontentamento, muitos passaram a olhar democraticamente para alternativas não democráticas de governo.

A democracia não está segura. Mais do que nunca, o espírito de Abril fez sentido. Em Portugal e na Europa. Os democratas têm de abandonar as trincheiras e combater pela liberdade. Pela democracia. Abrimos em 1974, pacificamente a partir das ruas do nosso país, aquilo a que o famoso Samuel Huntington chamou a “terceira vaga” de democratização do mundo. Num tempo em que a outra face da liberdade digital é a subtração de direitos reais, em que as autocracias e democracias iliberais se consolidam, em que a desigualdade absurda fomenta a revolta, em que a justiça é lenta e os escândalos diminuem a autoridade do poder político, é crucial liderar a reinvenção democrática. Redemocratizar a democracia. Como? (1) Com um poder político capaz de ser mais democrático, dando voz aos cidadãos e correspondendo honestamente às suas ambições. (2) Recuperando o contrato de confiança entre os eleitos e os eleitores, e dos cidadãos entre si. (3) Garantindo que o regime trata todos por igual.

Todos os cidadãos e instituições têm um papel na (r)evolução democrática. Recordar a História e, ao mesmo tempo, fazer História. Evocar a liberdade e construir a liberdade. É neste caminho de duas vias que vamos celebrar Abril em Cascais. No ano em que somos Capital Europeia da Juventude torna-se ainda mais importante passar o legado de Abril aos jovens.

Pela primeira vez na sua longa história, os portões do Forte de Santo António do Estoril abrem-se aos cidadãos. Um património como este, com a sua história e relevância nacional, não devia ter esperado quase 500 anos para ter sido entregue ao público. Mas aprofundar a democracia é isto: abrir caminhos para lugares desconhecidos, devolver ao povo o que é de todos.

Aquele lugar, literalmente pendurado entre o Atlântico e a Marginal, tem sido imaginado pelos que contemplam a fortificação militar sem nunca terem tido a oportunidade de saber o que está para lá das vedações. O olhar não tem de voltar a ficar preso nas redes. Precisamente no Dia da Liberdade, e na companhia do secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello, terei a enorme alegria de entregar o forte aos cidadãos.

Mandado construir pelos Filipes de Espanha em 1590, como parte do sistema de fortificações da barra do Tejo, o forte cumpriu funções de natureza militar durante a maior parte da sua longa vida. A degradação dos últimos anos não foi apenas violenta. Foi humilhante para qualquer português que respeite a sua história. A câmara, depois de o governo ter colocado o forte à responsabilidade municipal por 12 meses, pôs mãos à obra. Em pouco mais de 30 dias devolveu-se a dignidade ao Forte de Santo António. Os trabalhos ainda não terminaram. Mas estamos num ponto de não retorno: agora, o poder político sabe que os cidadãos não vão deixar que se regresse ao passado de abandono e vergonha.

Fiéis aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, conseguimos com a recuperação do Forte de Santo António dar mais um passo para o cumprimento do seu objetivo 11.o: cidades e comunidades sustentáveis.

Manter e salvaguardar o património cultural não é apenas uma meta dos ODS. É também uma ambição democrática. Construir a democracia também é isto: não esconder a História e dar a todos uma igual oportunidade de a conhecer.

Onde um dia caiu a ditadura, vamos agora construir a democracia.

 

Escreve à quarta-feira