Vidas difíceis, especulação fácil


As lutas contra a especulação imobiliária vão sendo feitas com a coragem de moradores que se recusam a que lhes digam que “aqui não se pode viver”


A D. Fernanda Valério tem 80 anos, quase o dobro dos que já passou na sua casa na Costa da Caparica. Há uns meses, uma empresa estrangeira enviou-lhe um aviso a dizer que teria de sair da sua casa em troca de 40 mil euros. A D. Fernanda, que ainda trabalha num restaurante para esticar a reforma de 300 e poucos euros até ao final do mês, sabe bem que as memórias de 47 anos da sua vida não têm preço. E sabe mais. Sabe que quando a casa das suas memórias for uma “moradia de praia” e a humilde Rua Catarina Eufémia for transformada num empreendimento turístico, 40 mil euros não lhe servirão para ter onde viver.

São 20 longas histórias, uma para cada família que preenche cada uma das casas do chamado Bairro do Bacalhoeiro, nesta cidade do concelho de Almada. Uma, duas, três gerações de gente trabalhadora que encontrou naquele bairro a concretização do direito à habitação que o 25 de Abril prometeu. Foi logo após 1974 que os primeiros moradores passaram a habitar as casas que foram inicialmente projetadas para casas de férias. Alguns já ali viviam e decidiram ali continuar.

Vidas difíceis. “Mas eles nunca fazem isto a quem tem vidas fáceis.” E quem poderia não lhes dar razão? São reformados com pensões de miséria, desempregados, salários mínimos, remediados e, como não podia deixar de ser em terra de pescadores, algumas vidas construídas no fio da malha das artes.

As casas começaram por pertencer à Mútua dos Bacalhoeiros, depois foram adquiridas pela Companhia de Seguros Atlântida, posteriormente pela Seguradora Açoriana e, mais tarde, pelos Seguros Reunidos. Está certo que nem sempre as rendas foram sendo pagas com o maior esmero, mas muito menos os senhorios cumpriram as suas obrigações. Se aquelas casas estão de pé é porque, em quatro décadas, os seus moradores cuidaram delas, fizeram obras, substituíram telhados e tudo quanto fosse preciso.

No final do ano passado, 40 anos de vizinhança tiveram o pagamento mais cruel. Os moradores souberam que as suas casas tinham sido vendidas a um fundo de investimento, o Acacia Point Capital Advisors, com escritórios em Londres, Munique e Lisboa, por cerca de 1,15 milhões. Sem qualquer explicação, aos moradores foram dados oito dias para exercer o direito de preferência de compra. Com um pequeno detalhe: tinham de entrar com os 1,15 milhões de uma vez só e comprar todas as casas em conjunto.

Depois de seguir o rasto a empresas de fachada, que nestas coisas nunca nada é transparente, o site da Acacia Point lá fez luz sobre as intenções do comprador. Foi em inglês que os moradores de 20 das 28 casas da Rua Catarina Eufémia, Rua Manuel Agro Ferreira e Rua Mestre Romualdo ficaram a saber que a empresa “adquiriu um conjunto de casas de praia portuguesas na Costa da Caparica, um dos mais populares destinos balneares de Lisboa, situado a apenas 20 minutos da capital. O conjunto engloba 28 moradias, com uma área coletiva de 8200 m2, que serão remodeladas e reconstruídas para acomodações residenciais e turísticas, com vários andares, capitalizando o enorme aumento do turismo no país e a forte procura por segundas residências localizadas na costa”.

Com o plano desvendado, embora ainda com muitas incógnitas, os autarcas do Bloco de Esquerda desafiaram a Câmara Municipal de Almada a anunciar que chumbaria qualquer projeto turístico que implicasse o despejo daquelas pessoas. Sabemos que ainda não entrou qualquer pedido de licença. Sabemos que o PDM não permite o desenho do empreendimento até agora anunciado. Sabemos também que a autarquia já anunciou as melhores intenções e garantias. É um primeiro passo, mas não chega.

Mais do que anúncios de intenções valerá a força desta gente e o apoio que tiverem na sua defesa do direito à habitação. Passaram 43 anos desde que o fizeram a primeira vez. Os compradores sabiam que “as 100 pessoas que vivem nestas casinhas da Costa da Caparica são gente envelhecida. Não contavam era que fosse gente combativa”.

As lutas contra a especulação imobiliária vão sendo feitas com a coragem de moradores que se recusam a que lhes digam que “aqui não se pode viver”. Há histórias difíceis atrás da especulação fácil.

 

Deputada do Bloco de Esquerda