Nós e a água

Nós e a água


Conhecer o papel da água no nosso corpo constitui um passo importante para valorizarmos este recurso imprescindível e universal


A lição de que a água é essencial à vida é-nos ministrada nas escolas ao longo de nossa infância e adolescência. Do pré–escolar ao secundário, o papel da água, o seu ciclo e a importância da conservação são temas abordados recorrentemente no contexto de disciplinas e atividades extracurriculares. Componente primário dos seres vivos, a água é indispensável à prosperidade das nossas sociedades nas mais variadas vertentes. Contudo, e certamente como resultado da abundância de que sempre temos desfrutado, a relação coletiva e individual que temos com a água parece assentar em alguma indiferença ou mesmo desapreço. A agudização dos episódios de seca dos últimos tempos força-nos a olhar para a água de um modo a que não estávamos habituados.

Conhecer o papel da água no nosso corpo constitui um passo importante para valorizarmos este recurso imprescindível e universal. A percentagem aproximada de água no corpo humano é de cerca de 60%. Transformada em volume, e num adulto bem proporcionado, esse valor equivale a cerca de 45 litros. É admirável que uma máquina tão complexa como o corpo humano funcione tão bem, mesmo com tanta água! E o facto é que esta predominância da pequena molécula que aprendemos a conhecer como H2O se repete em todos os seres vivos. Não é, por isso, de estranhar que a procura por água em estado líquido constitua uma das ocupações principais dos cientistas que exploram planetas e seus satélites em busca de sinais de vida.

Onde guardam os seres vivos tanta água? No nosso corpo, uma fração importante faz parte de líquidos como o sangue, a linfa, a urina e a saliva. Existe também água em abundância em fluidos intersticiais, células, tecidos e órgãos. Muitas destas moléculas não circulam livres, encontrando-se antes comprometidas em ligações com proteínas, ácidos nucleicos e carboidratos. Esta água estrutural é essencial para manter a estrutura tridimensional e a funcionalidade de biomoléculas, organelos, células e tecidos. Para além de atuar como transportadora de nutrientes, toxinas e células, a água intervém ativamente no metabolismo celular, sendo consumida ou libertada em inúmeras reações bioquímicas.

O destino da água que ingerimos é mais ou menos óbvio, mas não deixa de ser interessante detalhar alguns aspetos. Parte deste conhecimento deve-se a George Hevesy, que em 1933 expressou junto de um colega do laboratório de física de Manchester o desejo de saber a sorte de uma das inúmeras moléculas de água que bebia no seu chá. Hevesy acabou por alcançar esse desiderato um ano depois, recorrendo a amostras de um tipo especial de água “pesada”. Os resultados que obteve, entretanto validados por outros cientistas, indicam que metade da água que ingerimos num dado instante é expelida após nove dias. Sabe-se também que 99% da água corporal é renovada a cada 50 dias! Existe, assim, a probabilidade de durante a nossa vida ingerirmos moléculas que já percorreram o corpo dos nossos semelhantes ou de outros seres vivos.

Reconhecidamente, o modo como gerimos e utilizamos a água é pouco cuidado. Ao nível dos lares, dados da Associação Internacional da Água de 2015, relativos a 170 cidades em 40 países, indicam que os consumos de água potável das famílias portuguesas variam entre os 140 e os 260 litros por dia e por pessoa. Já nos municípios, o desperdício parece ser a norma, com cerca de 30% da água entrada no sistema a nível do país a não ser faturada (dados da ERSAR, a entidade reguladora de água e resíduos). E apesar dos avanços, muito progresso pode ainda ser alcançado ao nível do destino dado a águas residuais e efluentes industriais. De facto, em algumas empresas, o paradigma vigente é ainda o da devolução à comunidade e ambiente de águas pouco ou nada limpas, certamente de qualidade inferior à que receberam a montante. A aparente complacência com que as autoridades enfrentam os episódios regulares de descargas acidentais nos cursos de água ou a bonomia com que autorizam descargas controladas parecem pouco consentâneas com uma sociedade moderna. Não podemos deixar de lutar por um novo tempo em que a reposição no meio ambiente de águas industriais mais puras do que as recolhidas seja a norma moral. Haja vontade, até porque o que não falta é conhecimento científico e tecnologias de tratamento de efluentes capazes de o fazer. Poderá então o Tejo voltar a ter claras águas e correr suave e brandamente, como cantava Camões.

 

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