Política e justiça


A verdade é que o poder político continua a dispor de inúmeros instrumentos para evitar a ação da justiça. Desde logo, há sempre a possibilidade de se conceder amnistias, extinguindo ou reduzindo a responsabilidade criminal dos envolvidos, prática que há uns anos era recorrente em Portugal


Desde o advento do Estado liberal que os diversos Estados se baseiam no princípio da separação de poderes, sendo garantida a independência do poder judiciário em relação aos outros poderes do Estado. Balzac referia a este propósito que o Juiz Camusot, personagem da sua obra “A Comédia Humana”, era a pessoa mais poderosa de França, já que nem o próprio rei poderia interferir nos seus processos.

Em Portugal parece que se está a esquecer este dado essencial. Quando na comunicação social surgem vozes a criticar o impacto que determinado processo está a ter nas relações entre Portugal e Angola, ou quando se sugere que o Ministério Público nunca deveria incomodar o ministro das Finanças quando ele aparece a pedir bilhetes para um jogo de futebol por causa da imagem que o caso cria na Europa, o que se pretende é o condicionamento da justiça por causa do impacto político de certos processos. Mas a justiça, que na imagem romana é cega, não pode ser condicionada por questões de oportunidade política, tendo apenas que aplicar o direito, independentemente de quem esteja em causa – isto sem prejuízo de que todos se presumem inocentes até ao trânsito em julgado da sentença que estabeleça uma eventual condenação.

Mas se ninguém pode ser condenado sem ser julgado, é manifesto que também ninguém se pode considerar imune à acção da justiça, seja na fase da investigação, seja na fase do julgamento. Só assim se consegue obter a igualdade dos cidadãos perante a lei, que é também um dos princípios essenciais do Estado moderno. Como disse o juiz brasileiro Sérgio Moro aquando da condenação de Lula da Silva, “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você”.

Mas a verdade é que o poder político continua a dispor de inúmeros instrumentos para evitar a acção da justiça. Desde logo, há sempre a possibilidade de se conceder amnistias, extinguindo ou reduzindo a responsabilidade criminal dos envolvidos, prática que há uns anos era recorrente em Portugal, com os pretextos mais variados, desde uma qualquer visita do Papa até ao aniversário do 25 de Abril.

Outra hipótese é o afastamento dos mais altos responsáveis pela investigação criminal. Neste aspecto ficou célebre o caso do Massacre de Sábado à Noite, ocorrido em 20 de Outubro de 1973, quando o presidente Nixon mandou demitir Archibald Cox, o procurador que o estava a investigar no escândalo Watergate, levando às renúncias do procurador-geral e vice-procurador-geral dos Estados Unidos, o que abriu uma crise constitucional sem precedentes na América que culminou na renúncia do próprio Nixon.

É por isso que não se pode encarar de ânimo leve o facto de a ministra da Justiça ter vindo anunciar a não recondução da procuradora-geral da República a dez meses do fim do seu mandato. É hoje evidente que o Ministério Público está a funcionar muito melhor do que há uns anos, quando os seus mais altos responsáveis se limitavam a afirmar que Portugal não era um país de corruptos e as investigações eram quase sempre arquivadas. Hoje desapareceu a sensação de impunidade que grassava na opinião pública em relação a crimes cometidos pelos poderosos e isso deveu-se precisamente à acção de Joana Marques Vidal. Tal não é, naturalmente, garantia de que venha a ser reconduzida, uma vez que a decisão compete sempre ao governo e ao Presidente da República. Mas a última coisa de que o país precisa é que se crie na opinião pública a sensação de que a procuradora-geral saiu porque se estava a tornar incómoda. A confiança na justiça nunca pode ser posta em causa.

 

Professor da Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção

das regras do acordo ortográfico de 1990