Os despojados


O que aconteceu na semana em que acabou a luta dos trabalhadores da Triumph, a Oxfam revelou o relatório das desigualdades e a escritora Ursula K. Le Guin morreu


As trabalhadoras e os trabalhadores da antiga fábrica da Triumph conseguiram uma vitória. Não mantiveram, infelizmente, os seus empregos, nem a fábrica continuou a funcionar, mas conseguiram defender os seus direitos sobre uma empresa que se tornou insolvente. Lograram, com a sua determinação, poderem vir a receber aquilo a que têm direito legal pelas dezenas de anos em que trabalharam na fábrica.
Enquanto, nestas semanas, os trabalhadores de Sacavém não baixavam os braços e não aceitavam que os donos da fábrica ficassem com tudo o que tinha de precioso a empresa, a Oxfam divulgou mais um relatório sobre desigualdades. No documento com o título “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, a Comissão de Combate à Fome de Oxford denunciou que mais de 80% da riqueza criada no mundo em 2017 foi parar às mãos dos mais ricos, que são cerca de 1 % da população mundial. Houve um aumento histórico no número de multimilionários no mundo: “Atualmente existem 2043 multimilionários no mundo e 9 em cada 10 são homens”, pode-se ler no relatório. O documento afirma que, em 2017, a riqueza dessa ínfima minoria da população, cerca de 2 mil pessoas, aumentou 762 mil milhões de dólares (622,8 mil milhões de euros), uma verba suficiente para acabar sete vezes com a pobreza extrema no mundo. 
No início da semana passada, a 22 de janeiro, morreu a escritora Ursula K. Le Guin. Em 1974, ano da revolução portuguesa, a escritora publicou o romance “Os Despojados”. Como a maior parte das obras de ficção científica, fazia-se num futuro mítico a análise do que somos hoje. Nestas páginas digladiavam-se vários modelos de sociedade, com as suas qualidades e defeitos. Numa lua viviam as populações num regime igualitário, sem Estado e autogovernado pelas pessoas, e no principal país do planeta existia um capitalismo selvagem que proporcionava uma vida de luxo a alguns e uma miséria sem escapatória para muitos.
O romance é fruto de um sentimento de época, um tempo em que havia a capacidade de sonhar mundos diferentes. O racismo, a xenofobia e o ódio alimentam-se de uma realidade frustrante em que campeiam as injustiças e as desigualdades, mas sobretudo são garantidos por uma imposição prévia: querem-nos, e têm-nos, impedido de sonhar com mundos diferentes e melhores, em que aqueles que têm mandado até aqui sejam varridos para o caixote de lixo da História. De alguma forma, precisamos de regressar a um passado em que as utopias são pensáveis para que possamos construir um outro futuro.
A economia serve para conseguir que toda a população tenha as melhores condições de vida. O nosso atual modelo de vida produz exatamente o contrário: faz com que a esmagadora maioria da população esteja excluída da justa distribuição da riqueza e da decisão política. Nenhum partido se candidata a dizer “vamos tornar os ricos mais ricos e você vai ficar ainda mais pobre”, mas na realidade é isso que acontece, até porque a democracia não tem controlo sobre a forma como se desenrola a economia. Desde quando foram escritos “Os Despojados” até aos dias em que se reuniram, este ano, os poderosos do mundo, em Davos, a forma como funciona essa máquina, de criar desigualdades e produzir desempregados, mudou muito: passamos de uma economia em que a maioria dos lucros são gerados por investimentos no setor produtivo para uma economia em que os rendimentos advêm maioritariamente do setor financeiro e, sobretudo, da especulação. Até as fábricas de carros ganham mais nas suas operações financeiras, para conceder crédito aos seus compradores, do que propriamente a fazer os veículos. É uma economia de jogos na bolsa, de curto prazo, em que os acionistas ganham mais por desarticular fábricas como as da antiga Triumph do que ganhariam mantendo-as a funcionar. Está na sua natureza retirarem-se para paraísos fiscais e para zonas sem controlo e regulamentação estatal. Quando pensamos num poder-sombra ou numa finança-sombra, vêm-nos à ideia procedimentos esconsos feitos por criminosos, a lavar dinheiro do crime. Na realidade, a finança e a economia-sombra não são isso, são as operações financeiras que estão completamente fora do controlo dos Estados e das instituições internacionais. Por estranho que pareça, esta finança-sombra está no centro do sistema financeiro e intimamente ligada aos vários poderes políticos. Ela comprou há muito os principais dirigentes governamentais com “portas giratórias” e “paraquedas dourados”, garantindo-lhes um bilhete de entrada nesse mundo altamente lucrativo. Um jogo em que, quando se ganha, ganha-se tudo; e quando se perde, pagam os contribuintes. O montante de dinheiro envolvido na economia-sombra é várias vezes superior ao valor da produção anual de mercadorias e serviços.
Há uma transformação da vida e da riqueza numa espécie de jogo de computador. Há quase um corte com a vida dita real. Num divertido livro de Michael Lewis, “Flash Boys”, relata-se a forma como grandes bancos viciaram os resultados da bolsa de valores, em seu proveito, utilizando uma linha de comunicação de alta velocidade que lhes permitia ganhar milissegundos, aproveitar as diferenças de cotação entre a bolsa de Nova Iorque e Chicago e ganhar dezenas de milhares de milhões de dólares com isso. 
Há muito que se sabe que há uma diferença entre o que produz valor e como esse valor se transforma em dinheiro e os rendimentos são distribuídos. Para simplificar em poucas linhas: o oxigénio tem um enorme valor de uso, mas nenhum valor de troca. Ninguém o paga, pela razão que o respiramos de borla. Há bens a que nós atribuímos valor e consideramos reserva de outros valores apenas por serem escassos e pelas suas propriedades naturais de resistência ao tempo, como os diamantes e o ouro. Em relação ao resto das mercadorias reproduzíveis, que excluem mercadorias escassas e especiais, como as obras de arte, houve ao longo dos últimos séculos uma evolução no pensamento económico: desde os fisiocratas, que consideravam que só se criava riqueza na terra, porque era o único sítio em que se criava fisicamente qualquer coisa; passando pela teoria do valor do trabalho, em que o valor de uma mercadoria depende da quantidade de trabalho necessária para a produzir; até para o conceito de mais-valia em Marx, em que a riqueza é criada pelo trabalho e é apropriada pelo capitalista porque ele paga a força de trabalho a um preço muito inferior ao valor que ela, em ação, de facto produz.
Mas as mudanças não param aqui. Vejamos o caso concreto deste artigo, ou um artigo jornalístico: antigamente, o valor da informação era medido pelo valor do trabalho humano necessário para a produzir. Do ponto de vista prático, o preço dos jornais era mais barato que os seus custos de produção (salários, custos de impressão, despesas com instalações, o preço da utilização de instrumentos de trabalho mais o da impressão) porque os jornais recolhiam as suas receitas não apenas da venda, mas também da publicidade. Com o advento das novas tecnologias da informação, a internet e os agregadores de informação, como o Google, as redes sociais, como o Facebook, e a multiplicação de formas de ver essa informação, como os telemóveis, tudo isso se alterou. Os agregadores de informação e as redes sociais divulgam gratuitamente as notícias dos jornais; além disso, há milhares de milhões de pessoas que escrevem e produzem conteúdos gratuitamente para essas redes sociais, concorrendo com os produtores profissionais de informação. Chegámos a uma situação em que, embora qualquer informação custe horas de trabalho humano, o seu custo caminha para o zero para quem a lê.
Isso não altera obrigatoriamente a lei do valor nem a existência de mais-valia, apenas significa que os rendimentos gerados por essa atividade, agora feita por milhões de pessoas gratuitamente e por jornalistas cada vez mais mal pagos, são apropriados pelos gigantes da internet e não pelos donos dos jornais, cada vez mais deficitários, e muito menos por quem trabalha. Isto passa-se em vários setores: o maior serviço de táxis do mundo (Uber) não tem um carro; o maior vendedor de livros do mundo (Amazon) não tem uma livraria; a maior estrutura de aluguer de casas e quartos (Airbnb) não tem um único prédio; os maiores divulgadores de informação, Facebook e Google, não produzem sequer conteúdos nem têm jornais e televisões. 
Se até agora se tratava apenas de distribuir de uma forma diferente algo que é criado pelo trabalho humano, aditivado posteriormente por jogos e especulações financeiras, a coisa torna-se diferente com o desenvolvimento da inteligência artificial. A curto prazo vai ser possível que as máquinas substituam os humanos em grande parte dos empregos e, como estamos a falar de máquinas inteligentes – bastante diferentes dos teares que os ludistas tentaram queimar –, as próprias máquinas podem ser produzidas e melhoradas por outras máquinas que aprendam. Nessa altura, qual será a relação entre o trabalho humano e uma mercadoria, num momento em que não poderemos dizer que o valor da mercadoria produzida por uma máquina estava associada ao valor do trabalho humano necessária para criar essa mesma máquina? Provavelmente, nenhuma.
Caminhamos para um tempo em que, provavelmente, as máquinas vão progressivamente substituir o trabalho humano. A única forma de termos uma economia justa e que funcione para todos é distribuir o trabalho remanescente por todos, da mesma forma que os rendimentos. Neste momento, 80% dos rendimentos são dados a 1% da população, sem nenhuma justiça. Trata-se de distribuir com igualdade aquilo que a nossa sociedade produz, seja por humanos, seja por máquinas. 


Os despojados


O que aconteceu na semana em que acabou a luta dos trabalhadores da Triumph, a Oxfam revelou o relatório das desigualdades e a escritora Ursula K. Le Guin morreu


As trabalhadoras e os trabalhadores da antiga fábrica da Triumph conseguiram uma vitória. Não mantiveram, infelizmente, os seus empregos, nem a fábrica continuou a funcionar, mas conseguiram defender os seus direitos sobre uma empresa que se tornou insolvente. Lograram, com a sua determinação, poderem vir a receber aquilo a que têm direito legal pelas dezenas de anos em que trabalharam na fábrica.
Enquanto, nestas semanas, os trabalhadores de Sacavém não baixavam os braços e não aceitavam que os donos da fábrica ficassem com tudo o que tinha de precioso a empresa, a Oxfam divulgou mais um relatório sobre desigualdades. No documento com o título “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, a Comissão de Combate à Fome de Oxford denunciou que mais de 80% da riqueza criada no mundo em 2017 foi parar às mãos dos mais ricos, que são cerca de 1 % da população mundial. Houve um aumento histórico no número de multimilionários no mundo: “Atualmente existem 2043 multimilionários no mundo e 9 em cada 10 são homens”, pode-se ler no relatório. O documento afirma que, em 2017, a riqueza dessa ínfima minoria da população, cerca de 2 mil pessoas, aumentou 762 mil milhões de dólares (622,8 mil milhões de euros), uma verba suficiente para acabar sete vezes com a pobreza extrema no mundo. 
No início da semana passada, a 22 de janeiro, morreu a escritora Ursula K. Le Guin. Em 1974, ano da revolução portuguesa, a escritora publicou o romance “Os Despojados”. Como a maior parte das obras de ficção científica, fazia-se num futuro mítico a análise do que somos hoje. Nestas páginas digladiavam-se vários modelos de sociedade, com as suas qualidades e defeitos. Numa lua viviam as populações num regime igualitário, sem Estado e autogovernado pelas pessoas, e no principal país do planeta existia um capitalismo selvagem que proporcionava uma vida de luxo a alguns e uma miséria sem escapatória para muitos.
O romance é fruto de um sentimento de época, um tempo em que havia a capacidade de sonhar mundos diferentes. O racismo, a xenofobia e o ódio alimentam-se de uma realidade frustrante em que campeiam as injustiças e as desigualdades, mas sobretudo são garantidos por uma imposição prévia: querem-nos, e têm-nos, impedido de sonhar com mundos diferentes e melhores, em que aqueles que têm mandado até aqui sejam varridos para o caixote de lixo da História. De alguma forma, precisamos de regressar a um passado em que as utopias são pensáveis para que possamos construir um outro futuro.
A economia serve para conseguir que toda a população tenha as melhores condições de vida. O nosso atual modelo de vida produz exatamente o contrário: faz com que a esmagadora maioria da população esteja excluída da justa distribuição da riqueza e da decisão política. Nenhum partido se candidata a dizer “vamos tornar os ricos mais ricos e você vai ficar ainda mais pobre”, mas na realidade é isso que acontece, até porque a democracia não tem controlo sobre a forma como se desenrola a economia. Desde quando foram escritos “Os Despojados” até aos dias em que se reuniram, este ano, os poderosos do mundo, em Davos, a forma como funciona essa máquina, de criar desigualdades e produzir desempregados, mudou muito: passamos de uma economia em que a maioria dos lucros são gerados por investimentos no setor produtivo para uma economia em que os rendimentos advêm maioritariamente do setor financeiro e, sobretudo, da especulação. Até as fábricas de carros ganham mais nas suas operações financeiras, para conceder crédito aos seus compradores, do que propriamente a fazer os veículos. É uma economia de jogos na bolsa, de curto prazo, em que os acionistas ganham mais por desarticular fábricas como as da antiga Triumph do que ganhariam mantendo-as a funcionar. Está na sua natureza retirarem-se para paraísos fiscais e para zonas sem controlo e regulamentação estatal. Quando pensamos num poder-sombra ou numa finança-sombra, vêm-nos à ideia procedimentos esconsos feitos por criminosos, a lavar dinheiro do crime. Na realidade, a finança e a economia-sombra não são isso, são as operações financeiras que estão completamente fora do controlo dos Estados e das instituições internacionais. Por estranho que pareça, esta finança-sombra está no centro do sistema financeiro e intimamente ligada aos vários poderes políticos. Ela comprou há muito os principais dirigentes governamentais com “portas giratórias” e “paraquedas dourados”, garantindo-lhes um bilhete de entrada nesse mundo altamente lucrativo. Um jogo em que, quando se ganha, ganha-se tudo; e quando se perde, pagam os contribuintes. O montante de dinheiro envolvido na economia-sombra é várias vezes superior ao valor da produção anual de mercadorias e serviços.
Há uma transformação da vida e da riqueza numa espécie de jogo de computador. Há quase um corte com a vida dita real. Num divertido livro de Michael Lewis, “Flash Boys”, relata-se a forma como grandes bancos viciaram os resultados da bolsa de valores, em seu proveito, utilizando uma linha de comunicação de alta velocidade que lhes permitia ganhar milissegundos, aproveitar as diferenças de cotação entre a bolsa de Nova Iorque e Chicago e ganhar dezenas de milhares de milhões de dólares com isso. 
Há muito que se sabe que há uma diferença entre o que produz valor e como esse valor se transforma em dinheiro e os rendimentos são distribuídos. Para simplificar em poucas linhas: o oxigénio tem um enorme valor de uso, mas nenhum valor de troca. Ninguém o paga, pela razão que o respiramos de borla. Há bens a que nós atribuímos valor e consideramos reserva de outros valores apenas por serem escassos e pelas suas propriedades naturais de resistência ao tempo, como os diamantes e o ouro. Em relação ao resto das mercadorias reproduzíveis, que excluem mercadorias escassas e especiais, como as obras de arte, houve ao longo dos últimos séculos uma evolução no pensamento económico: desde os fisiocratas, que consideravam que só se criava riqueza na terra, porque era o único sítio em que se criava fisicamente qualquer coisa; passando pela teoria do valor do trabalho, em que o valor de uma mercadoria depende da quantidade de trabalho necessária para a produzir; até para o conceito de mais-valia em Marx, em que a riqueza é criada pelo trabalho e é apropriada pelo capitalista porque ele paga a força de trabalho a um preço muito inferior ao valor que ela, em ação, de facto produz.
Mas as mudanças não param aqui. Vejamos o caso concreto deste artigo, ou um artigo jornalístico: antigamente, o valor da informação era medido pelo valor do trabalho humano necessário para a produzir. Do ponto de vista prático, o preço dos jornais era mais barato que os seus custos de produção (salários, custos de impressão, despesas com instalações, o preço da utilização de instrumentos de trabalho mais o da impressão) porque os jornais recolhiam as suas receitas não apenas da venda, mas também da publicidade. Com o advento das novas tecnologias da informação, a internet e os agregadores de informação, como o Google, as redes sociais, como o Facebook, e a multiplicação de formas de ver essa informação, como os telemóveis, tudo isso se alterou. Os agregadores de informação e as redes sociais divulgam gratuitamente as notícias dos jornais; além disso, há milhares de milhões de pessoas que escrevem e produzem conteúdos gratuitamente para essas redes sociais, concorrendo com os produtores profissionais de informação. Chegámos a uma situação em que, embora qualquer informação custe horas de trabalho humano, o seu custo caminha para o zero para quem a lê.
Isso não altera obrigatoriamente a lei do valor nem a existência de mais-valia, apenas significa que os rendimentos gerados por essa atividade, agora feita por milhões de pessoas gratuitamente e por jornalistas cada vez mais mal pagos, são apropriados pelos gigantes da internet e não pelos donos dos jornais, cada vez mais deficitários, e muito menos por quem trabalha. Isto passa-se em vários setores: o maior serviço de táxis do mundo (Uber) não tem um carro; o maior vendedor de livros do mundo (Amazon) não tem uma livraria; a maior estrutura de aluguer de casas e quartos (Airbnb) não tem um único prédio; os maiores divulgadores de informação, Facebook e Google, não produzem sequer conteúdos nem têm jornais e televisões. 
Se até agora se tratava apenas de distribuir de uma forma diferente algo que é criado pelo trabalho humano, aditivado posteriormente por jogos e especulações financeiras, a coisa torna-se diferente com o desenvolvimento da inteligência artificial. A curto prazo vai ser possível que as máquinas substituam os humanos em grande parte dos empregos e, como estamos a falar de máquinas inteligentes – bastante diferentes dos teares que os ludistas tentaram queimar –, as próprias máquinas podem ser produzidas e melhoradas por outras máquinas que aprendam. Nessa altura, qual será a relação entre o trabalho humano e uma mercadoria, num momento em que não poderemos dizer que o valor da mercadoria produzida por uma máquina estava associada ao valor do trabalho humano necessária para criar essa mesma máquina? Provavelmente, nenhuma.
Caminhamos para um tempo em que, provavelmente, as máquinas vão progressivamente substituir o trabalho humano. A única forma de termos uma economia justa e que funcione para todos é distribuir o trabalho remanescente por todos, da mesma forma que os rendimentos. Neste momento, 80% dos rendimentos são dados a 1% da população, sem nenhuma justiça. Trata-se de distribuir com igualdade aquilo que a nossa sociedade produz, seja por humanos, seja por máquinas.