O Presidente da República fez bem em vetar a polémica lei de financiamento dos partidos. Foi pontual e preciso. Fez bem na substância, ao travar a lei. E fez bem na forma, poupando os partidos e a Assembleia ao açoitamento público a que se sujeitaram.
Se o Presidente tivesse ido mais longe, teria errado duas vezes: uma, teria feito o que já não era preciso; outra, teria aberto um conflito institucional severo que deixaria na sombra o único tema verdadeiro – o gritante erro parlamentar. O laconismo do Presidente não foi, portanto, clemência, nem, muito menos, complacência. Foi economia e pontaria.
Agora, nada será como dantes. Os temas mais controversos da lei – a isenção total de IVA e a angariação de fundos sem limites – ficaram certamente pelo caminho. E tudo o que se quis negociar em segredo será impossível de regressar a esse recato. Mal reabrir o processo, haverá mil olhos e outros tantos ouvidos, à espreita e à escuta. Costuma ser assim: aquilo que se esconde acaba sempre por revelar-se com estrondo; e nunca mais recupera a discrição que, nalgumas fases, poderia adequar-se.
O estranho é como a Assembleia da República pôde cometer colectivamente um erro desta magnitude. E estranho é como pôde imaginar-se que uma lei sobre uma matéria destas poderia ser tramitada e aprovada a pé ligeiro e à queima-roupa, assobiando o Jingle Bells, Jingle Bells pela Rua de São Bento acima, sem que ninguém se desse conta.
No ramerrame das muitas coisas e coisinhas do dia-a-dia, perdeu-se já extensamente a noção do que é a representação parlamentar e o devido processo legislativo. E o sistema, na forma como vem decaindo, já escangalhou a colegialidade plena, que é timbre do trabalho parlamentar (nos grupos políticos, nas comissões, no plenário), e destruiu até ao grau zero a responsabilidade individual dos deputados e a possibilidade do seu exercício.
Indo às fontes oficiais, o que mostra este processo?
O Tribunal Constitucional escreveu uma carta à Assembleia, comentando imperfeições do regime em vigor. O assunto caiu na esfera da 1ª Comissão, que constituiu um grupo de trabalho. Este grupo iniciou actividade em 22 de Março de 2017. O coordenador era do PSD, juntando representantes de todos os partidos, com excepção do BE e do PAN (não se percebe por que omitem os registos a presença do BE, quando é público que participou e viria até a ser co-autor do projecto de lei fatídico). O grupo realizou nove reuniões: oito, entre 26 de Abril e 29 de Junho; e mais uma, a última, a 11 de Outubro. De todas sabe-se apenas a agenda, lacónica. De nenhuma se conhece uma única acta. Veio a público, já no meio do caldo entornado, uma acta da 1ª Comissão sobre a tramitação final da matéria, mas em termos que não correspondiam de todo, segundo se demonstrou, ao que na reunião se teria passado. No fim, todos os partidos, menos o CDS e o PAN (este, pela sua dimensão, nunca participara), decidem apresentar um projecto de lei colectivo. Foi a 19 de Dezembro. É logo agendado para 21, onde, a trouxe-mouxe e de carrinho, são feitos: o debate na generalidade, em modo de monólogos cruzados, a despachar; a votação na generalidade (abstenção do CDS e PAN, aprovação por PSD, PS, BE, PCP e PEV); a votação na especialidade (preparada em apenas três votos: em separado, os dois pontos onde não havia consenso e CDS e PAN votaram contra; e uma terceira votação para todo o resto do extenso articulado, com unanimidade); e a votação global final, com aprovação pelos cinco co-autores (PSD, PS, BE, PCP e PEV) e votos contra de CDS e PAN. Segundo o “Sol”, estas votações, como é hábito neste tipo de sessões, foram despachadas em série, caindo, na tômbola do dia, entre uma recomendação para o fim “de concessões de hidrocarbonetos remanescentes no território” e cinco projectos de lei sobre “animais nos circos”. Foi assim.
O conteúdo da lei era alterar quatro leis das mais relevantes do sistema político (Tribunal Constitucional, partidos políticos, financiamento e Entidade das Contas) – duas são leis de valor reforçado, com estatuto constitucional de Leis Orgânicas. Por isso, além do desastre político, entendo que tudo decorreu em clara inconstitucionalidade formal: não só as fases de generalidade, especialidade e final global não podem ser amalgamadas daquele modo, sem o tempo próprio de respiração e abertura que caracteriza a formação legislativa parlamentar, mas também, tratando-se de Leis Orgânicas, a votação na especialidade não poderia ter sido despachada por atacado daquela forma, sem que todos os deputados e o público tivessem noção do que estava a ser votado, assim como da sua sensibilidade e importância.
O projecto deveria ter sido anunciado com solenidade, traduzindo um “consenso tão amplo”. Ecoaria publicamente. Seria objecto de debate na generalidade, autónomo. Aprovado, baixaria de novo à comissão para acertos na especialidade. E regressaria a plenário para as votações finais, na especialidade e global. Assim é que era.
Quando rebentou a polémica, não surpreendeu que, além do desconcerto no PSD e no PS e das tentativas de bater em retirada do BE e de recarga do PCP, os títulos soassem: “Deputados não sabiam o que estavam a votar”. Infelizmente, é frequente. O sistema está feito para isso.
Nos grupos parlamentares, as coisas variam, no modo e na moda de cada um, desde o dirigismo seco e absoluto ao espírito colectivo enraizado, consoante a cultura interna que se foi formando ou impondo. O quadro é, em geral, muito mau em termos de colegialidade democrática: efectiva, participada, institucionalizada. E, na Assembleia, a interpretação do Regimento e a sua prática são quase sempre feitas com prejuízo para a qualidade democrática do debate e da decisão. A aparência domina a forma, a forma prevalece sobre a substância, a quantidade vale mais que a qualidade, a velocidade importa mais que a profundidade, o espectáculo engole o debate, a zaragata prepondera sobre o confronto de ideias, a interacção pública com o país fica aquém do que necessitamos.
O veto presidencial acentua a necessidade de séria reflexão sobre a constitucionalidade destas metodologias, que degradam o Parlamento e os próprios partidos. E confirma o imperativo por que temos lutado na esteira do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade: a indispensabilidade da reforma do sistema eleitoral que restitua a democracia à cidadania.
Quem tem dúvidas de que, com deputados senhores do mandado representativo e titulares plenos da responsabilidade política individual, nada disto poderá passar-se? Um processo só pode ser participado se os participantes mandam alguma coisa. Ora, o problema é que os partidos chegaram a um tal estado em Portugal que os deputados, individualmente e como corpo, não mandam nada. Só mudando o sistema recuperaremos a democracia e o seu crédito público.
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade