Surpresa?


Num Estado que fiscaliza só às vezes, onde as declarações de conflito de interesses pessoais e profissionais são tabu e a transparência tem muito que se lhe diga, um caso como o da Raríssimas é só mais uma prova


A poeira ainda há de assentar e a justiça levará o seu tempo a chegar a um veredicto mas, para já, o escândalo em torno da Raríssimas tocou em algumas das feridas profundas de um Estado que fiscaliza mais a título extraordinário do que por rotina, de um país onde o lóbi existe – como em todos os países – mas não está regulamentado, onde as incompatibilidades pessoais são mais tabu ou tema de coscuvilhice do que motivo para declaração de interesses a título preventivo e a transparência na administração pública é muitas vezes um chavão inconsequente – que o digam os muitos pedidos que nós, jornalistas, colocamos às instituições e que não chegam a ter resposta ou demoram semanas ou meses a ter seguimento, mesmo que os últimos governos tenham repetido à exaustão a ideia de que nunca houve tanta prestação de contas públicas…

Não é surpresa um caso de aparente gestão danosa e favorecimento pessoal numa associação financiada e supostamente também escrutinável pelo Estado; seguramente, haverá muitos outros. Surpreende, mas choca sobretudo ser a Raríssimas uma associação fundada por uma mulher, que perdeu o filho, para apoiar uma minoria fragilizada e que nos últimos anos, quer queiramos quer não, contribuiu decisivamente para que no país se falasse de doenças raras. Por definição são diagnósticos que afetam apenas uma em cada 2 mil pessoas, muitas vezes com nomes impronunciáveis e que obrigam os pais – são detetadas, na maioria das vezes, na infância – a um calvário de consultas, exames e esperas ansiosas até perceber o que podem ou não fazer pelos filhos, também porque muitos dos apoios adicionais em atividades ocupacionais, terapias e demais acompanhamentos não estão disponíveis no Estado.

Recordo-me por exemplo, há uns anos, da saga burocrática para que começassem a ser emitidos os cartões para os doentes raros, que resultaram de uma resolução da Assembleia da República em 2009, para sistematizar a informação sobre cada caso que muitas vezes os médicos, precisamente por serem casos raros, podem não saber como gerir numa situação de urgência ou para onde fazer o devido encaminhamento. Foi preciso mais de cinco anos para que passassem a ser rotina e, mesmo assim, estão longe de abranger todos os doentes classificados no país neste grupo. E a Casa dos Marcos, nos últimos dias nas bocas do mundo, é a única unidade de cuidados continuados integrados especializada em doenças raras com convenção com o SNS.

Dito isto, como verbalizou em entrevista ao i um dos ex-tesoureiros da Raríssimas que denunciou os abusos na associação, o facto de Paula Brito e Costa ter feito muito e de ter conseguido mover mundos e fundos para a causa, com a chancela de “madrinhas” como Maria Cavaco Silva e a rainha de Espanha, não lhe dá o direito de ficar imune à justiça. Brito e Costa considera-se vítima de uma cabala e o tempo o dirá, mas o Estado e a política não saem melhor da fotografia.

O secretário de Estado da Saúde demitiu-se pelo que entendeu ser uma violação grave da sua privacidade mas, 24 horas antes, o governo achava aparentemente normal que uma pessoa que convidou para o executivo, meses antes de tomar posse, e não sendo essa a sua atividade profissional exclusiva, insistisse para receber honorários como consultor de uma associação que sabia ter tido necessidade de recorrer ao Estado para equilíbrio financeiro. “Vou dar instruções para rapar o tacho e pagar-lhe ainda hoje”, dizia o email do tesoureiro divulgado na reportagem da TVI.

O ministro Vieira da Silva, que pertenceu à assembleia-geral da Raríssimas e teria uma relação próxima com Paula Brito e Costa, dará explicações no parlamento na segunda-feira, e o PS, pela voz de Carlos César, disse estar tranquilo mas não satisfeito. César diz que o Estado tem deficiências na área inspetiva e fiscalizadora. Adivinham-se novas leis. Tem também na área dos conflitos de interesse, e ainda há poucos meses o assunto foi debatido, com a polémica das viagens custeadas por empresas a dirigentes públicos. “Qualquer membro do Governo que se encontre perante um conflito de interesses, atual ou potencial, deve tomar imediatamente as medidas necessárias para evitar, sanar ou fazer cessar o conflito em causa”, diz o código de conduta do governo. Não basta dizer. Num ano em que tanto se debateu a falência do Estado, este é mais um caso que deixará 2017 na memória pelas piores razões.

Jornalista, Escreve à sexta-feira