Não é bem assim


Uma sociedade que não aprende com os erros cometidos, que é incapaz de os assumir, tende a perpetuar as situações pantanosas, as promiscuidades entre o público e o privado ou entre a política e os negócios


Uma sociedade que não coloca exigência, rigor e transparência no seu modo de funcionamento não pode esperar menos do que a eclosão de casos como o da presidente da Associação Raríssimas, a débâcle de parte do sistema bancário, o pavonear de exercícios não escrutinados, o inconstante cumprimento de algumas das funções do Estado ou a sucessão de episódios em que o que é divulgado não corresponde bem à realidade.

Uma sociedade que não aprende com os erros cometidos, que é incapaz de os assumir, incorporando-os no processo construtivo como parte integrante do risco do caminho a percorrer, tende a perpetuar as situações pantanosas, as promiscuidades entre o público e o privado ou entre a política e os negócios, e a concretizar soluções que aparentam baralhar para que tudo, na realidade, fique na mesma. É esse o sentido de manutenção dos equilíbrios que têm feito a felicidade dos esquemas, a par da falta de exigência da cidadania, da deficiente perceção do exercício de funções de representação, da insuficiência dos poderes reguladores e da ineficiência da justiça.

O “não é bem assim” deveria servir para incutir redobradas cautelas na avaliação do que nos é comunicado, mas também para que, depois dos marasmos cívicos perante o curso do quotidiano, quando surge um caso, a turba de indignação não confunda a árvore com a floresta. Sim, porque assistir às generalizações a partir do caso concreto por parte de muita gente que nunca mexeu uma palha numa lógica comunitária, além do exercício teórico do bitaite público ou da má-língua das redes sociais, não passa de um complemento ao triste espetáculo da realidade. Uma situação que acontece, em boa parte, porque há amorfismo cívico, falta de exigência no funcionamento das instituições e passividade de quem devia fiscalizar. É claro que a montante há um problema estrutural de educação, de valores e de princípios que formata o comportamento humano desviante e muito tolerado pela sociedade que, aliás, não valoriza a normalidade. 

“Não é bem assim” quando se diz apostar no turismo como um dos motores da economia nacional, consegue-se ganhar o óscar do turismo e, depois, quem chega ao Aeroporto Internacional Humberto Delgado, em Lisboa, proveniente de fora do Espaço Schengen, tem de esperar até três horas para passar o controlo alfandegário porque o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não tem recursos suficientes. Se vier do norte de África, pode esperar mais tempo no aeroporto do que o que gastou na viagem.

“Não é bem assim” quando se aposta num amplo processo de descentralização de competências e de meios do poder central para as autarquias locais, considerado a “pedra angular da reforma do Estado”, mas, depois, o Estado, a partir de Lisboa, quer impor o número de farmácias de serviço num determinado território, como se tivesse noção dos condicionalismos de mobilidade das populações. É o regresso da gestão política a régua e esquadro.

Este ano que termina está pejado de “não é bem assim” (incêndios florestais, roubo de armamento em Tancos, cativações e posições de força dos partidos que apoiam a solução orçamental), mas quem não se lembra dos Natais passados, com a “saída limpa do programa da troika”, a “demissão irrevogável” ou as proclamações sem nexo com a realidade. No essencial, não se trata de nenhuma dimensão política ou ideológica, mas do resultado da natureza humana perante uma sociedade e cidadãos demasiado conformados com a realidade comunicada. 

O que é trágico, do ponto de vista do funcionamento da sociedade, é que a exigência só surja episodicamente ou em função de determinados ciclos de natureza política, económica ou social. O tempo do “afinal, quando, como e porquê” tarda em se implantar, mais de 43 anos depois da memória de uma época em que muito era questionável, mas muito pouco era questionado. Há faturas que continuamos a pagar, por conveniência de alguns e por comodismo de outros. Quem questiona, como quem discorda, é sempre encarado como um bicho raro, perturbador do status instalado. Quem pensa de forma diferente é inconveniente, ressabiado e um perigoso desestabilizador dos equilíbrios, dos interesses e dos esquemas. Já vai sendo tempo de mais cidadania e maior escrutínio dos poderes e das opções públicas. Tempo de escrutínio, exigência e transparência. Tempo de verdade.

NOTAS FINAIS

É bem assim. Num quadro de euforia, confiança e indicadores económicos positivos, o que leva Francisco Louçã a proclamar que “vamo-nos aproximando de um novo colapso financeiro”, sendo secundado pela presidente do conselho de supervisão do Banco Central Europeu, Danièle Nouy, que afirmou que “vai haver uma próxima crise, há sempre uma nova crise”. Radicarão nestas expetativas as agitações e demarcações políticas q.b. após a inalação do cheiro a boletim de voto?

Assim-assim a caminho de mal. Na Autoeuropa continua-se a brincar com o fogo. A empresa representa mais de 1% do PIB nacional, as exportações são 3,7% do total das vendas que Portugal faz ao exterior e o novo modelo da VW vale 24% das exportações da fábrica. 

É mal assim. A deriva consumista aí está de volta. Bancos a interpelarem-nos via telefone com ofertas de crédito para as compras de Natal e para outros gastos. Depois, se corre mal, o malparado é um problema de todos. Haja bom senso, que os contribuintes estão cansados de suportar tanta irresponsabilidade política e financeira.

Nunca foi assim. É uma evidência que o fim da manutenção do poder justifica tudo numa lógica de sobrevivência política, até a audição em silêncio do destrato da coordenadora do BE ao afirmar que “o PS é permeável aos grandes interesses económicos”. Quem não se dá ao respeito não é respeitado. Uma direção política que é forte com os fracos (militantes dissonantes que irão ser preventivamente suspensos com o objetivo de os expulsar), mas fraca com quem tornou forte. É gravíssimo o silêncio perante o BE e a ausência de separação de poderes (poder executivo/deliberativo a exercer funções jurisdicionais). É o vale-tudo.

Militante do Partido Socialista, Escreve à quinta-feira


Não é bem assim


Uma sociedade que não aprende com os erros cometidos, que é incapaz de os assumir, tende a perpetuar as situações pantanosas, as promiscuidades entre o público e o privado ou entre a política e os negócios


Uma sociedade que não coloca exigência, rigor e transparência no seu modo de funcionamento não pode esperar menos do que a eclosão de casos como o da presidente da Associação Raríssimas, a débâcle de parte do sistema bancário, o pavonear de exercícios não escrutinados, o inconstante cumprimento de algumas das funções do Estado ou a sucessão de episódios em que o que é divulgado não corresponde bem à realidade.

Uma sociedade que não aprende com os erros cometidos, que é incapaz de os assumir, incorporando-os no processo construtivo como parte integrante do risco do caminho a percorrer, tende a perpetuar as situações pantanosas, as promiscuidades entre o público e o privado ou entre a política e os negócios, e a concretizar soluções que aparentam baralhar para que tudo, na realidade, fique na mesma. É esse o sentido de manutenção dos equilíbrios que têm feito a felicidade dos esquemas, a par da falta de exigência da cidadania, da deficiente perceção do exercício de funções de representação, da insuficiência dos poderes reguladores e da ineficiência da justiça.

O “não é bem assim” deveria servir para incutir redobradas cautelas na avaliação do que nos é comunicado, mas também para que, depois dos marasmos cívicos perante o curso do quotidiano, quando surge um caso, a turba de indignação não confunda a árvore com a floresta. Sim, porque assistir às generalizações a partir do caso concreto por parte de muita gente que nunca mexeu uma palha numa lógica comunitária, além do exercício teórico do bitaite público ou da má-língua das redes sociais, não passa de um complemento ao triste espetáculo da realidade. Uma situação que acontece, em boa parte, porque há amorfismo cívico, falta de exigência no funcionamento das instituições e passividade de quem devia fiscalizar. É claro que a montante há um problema estrutural de educação, de valores e de princípios que formata o comportamento humano desviante e muito tolerado pela sociedade que, aliás, não valoriza a normalidade. 

“Não é bem assim” quando se diz apostar no turismo como um dos motores da economia nacional, consegue-se ganhar o óscar do turismo e, depois, quem chega ao Aeroporto Internacional Humberto Delgado, em Lisboa, proveniente de fora do Espaço Schengen, tem de esperar até três horas para passar o controlo alfandegário porque o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não tem recursos suficientes. Se vier do norte de África, pode esperar mais tempo no aeroporto do que o que gastou na viagem.

“Não é bem assim” quando se aposta num amplo processo de descentralização de competências e de meios do poder central para as autarquias locais, considerado a “pedra angular da reforma do Estado”, mas, depois, o Estado, a partir de Lisboa, quer impor o número de farmácias de serviço num determinado território, como se tivesse noção dos condicionalismos de mobilidade das populações. É o regresso da gestão política a régua e esquadro.

Este ano que termina está pejado de “não é bem assim” (incêndios florestais, roubo de armamento em Tancos, cativações e posições de força dos partidos que apoiam a solução orçamental), mas quem não se lembra dos Natais passados, com a “saída limpa do programa da troika”, a “demissão irrevogável” ou as proclamações sem nexo com a realidade. No essencial, não se trata de nenhuma dimensão política ou ideológica, mas do resultado da natureza humana perante uma sociedade e cidadãos demasiado conformados com a realidade comunicada. 

O que é trágico, do ponto de vista do funcionamento da sociedade, é que a exigência só surja episodicamente ou em função de determinados ciclos de natureza política, económica ou social. O tempo do “afinal, quando, como e porquê” tarda em se implantar, mais de 43 anos depois da memória de uma época em que muito era questionável, mas muito pouco era questionado. Há faturas que continuamos a pagar, por conveniência de alguns e por comodismo de outros. Quem questiona, como quem discorda, é sempre encarado como um bicho raro, perturbador do status instalado. Quem pensa de forma diferente é inconveniente, ressabiado e um perigoso desestabilizador dos equilíbrios, dos interesses e dos esquemas. Já vai sendo tempo de mais cidadania e maior escrutínio dos poderes e das opções públicas. Tempo de escrutínio, exigência e transparência. Tempo de verdade.

NOTAS FINAIS

É bem assim. Num quadro de euforia, confiança e indicadores económicos positivos, o que leva Francisco Louçã a proclamar que “vamo-nos aproximando de um novo colapso financeiro”, sendo secundado pela presidente do conselho de supervisão do Banco Central Europeu, Danièle Nouy, que afirmou que “vai haver uma próxima crise, há sempre uma nova crise”. Radicarão nestas expetativas as agitações e demarcações políticas q.b. após a inalação do cheiro a boletim de voto?

Assim-assim a caminho de mal. Na Autoeuropa continua-se a brincar com o fogo. A empresa representa mais de 1% do PIB nacional, as exportações são 3,7% do total das vendas que Portugal faz ao exterior e o novo modelo da VW vale 24% das exportações da fábrica. 

É mal assim. A deriva consumista aí está de volta. Bancos a interpelarem-nos via telefone com ofertas de crédito para as compras de Natal e para outros gastos. Depois, se corre mal, o malparado é um problema de todos. Haja bom senso, que os contribuintes estão cansados de suportar tanta irresponsabilidade política e financeira.

Nunca foi assim. É uma evidência que o fim da manutenção do poder justifica tudo numa lógica de sobrevivência política, até a audição em silêncio do destrato da coordenadora do BE ao afirmar que “o PS é permeável aos grandes interesses económicos”. Quem não se dá ao respeito não é respeitado. Uma direção política que é forte com os fracos (militantes dissonantes que irão ser preventivamente suspensos com o objetivo de os expulsar), mas fraca com quem tornou forte. É gravíssimo o silêncio perante o BE e a ausência de separação de poderes (poder executivo/deliberativo a exercer funções jurisdicionais). É o vale-tudo.

Militante do Partido Socialista, Escreve à quinta-feira