Censura e propaganda


Seria pedir muito a este governo que se deixasse de operações de censura e propaganda e se preocupasse antes em governar e prestar contas ao país pelo colapso dos serviços que tutela?


Fez no passado domingo 50 anos sobre as cheias de 1967, a maior catástrofe natural ocorrida em Portugal desde o terramoto de 1755. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 morreram em consequência da chuva 700 pessoas, tendo 20 mil casas ficado destruídas. No entanto, a verdadeira dimensão da tragédia foi ocultada dos portugueses, já que o governo de Salazar proibiu a revelação do verdadeiro número de mortos, mandando os jornais parar de contar as vítimas a partir de certo momento.

Na altura, o governo tinha poderes para fazer esta operação de censura à imprensa, uma vez que o § 2.o do art.o 8.o da Constituição de 1933 determinava que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do pensamento, de ensino, de reunião e de associação, devendo, quanto à primeira, impedir preventiva e repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos (…)”. Salazar defendia que os portugueses deviam ser levados a “viver habitualmente” e, nesse modo plácido de existir, não podia caber a ocorrência de quaisquer tragédias em Portugal.

Passaram 50 anos, o Estado Novo caiu há décadas e, hoje, o art.o 37.o, n.o 2, da Constituição estabelece que o exercício da liberdade de expressão e informação “não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. Mas, apesar disso, a enorme tragédia dos fogos de Verão em Portugal e a responsabilidade do Estado neste domínio continua a ser escondida dos portugueses. Primeiro, a própria lista dos mortos foi ocultada, a pretexto de segredo de justiça, como se a morte de qualquer pessoa não fosse um facto público, que tem de constar obrigatoriamente do Registo Civil. Depois foi cortado o capítulo de um relatório oficial sobre as circunstâncias da morte das vítimas, a pretexto da protecção de dados pessoais, contra a vontade dos seus familiares, que é a quem compete decidir o exercício dos seus direitos de personalidade após a morte. O Estado, esse célebre “monstro frio” de que falava Nietzsche, bem pode colapsar na altura de prestar socorro às vítimas, mas continua a mostrar-se extremamente eficaz em proteger a circulação de informação prejudicial ao governo.

Mas, como se não bastasse a censura, falta ainda a propaganda. No Estado Novo tínhamos não apenas o Secretariado da Propaganda Nacional como também era sempre possível pedir ao almirante Tenreiro a organização de uma manifestação de apoio ao regime. Hoje, o governo é mais moderno. Limita-se a contratar por ajuste directo uma agência de comunicação para, em parceria com uma universidade, prestar “serviços de recrutamento de participantes para integrar um estudo quantitativo e uma sessão pública no âmbito da iniciativa de avaliação do segundo ano em funções do xxi Governo Constitucional”. Os participantes no “estudo quantitativo” recebem vales de compras a troco de se deslocarem a Aveiro para fazer perguntas ao governo. Tudo isto, naturalmente, pago com o dinheiro dos contribuintes, que é assim destinado a financiar a propaganda do governo.

Seria pedir muito a este governo que se deixasse de operações de censura e propaganda e se preocupasse antes em governar e prestar contas ao país pelo colapso dos serviços que tutela? Não é isso simplesmente o que se espera de um governo?

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Censura e propaganda


Seria pedir muito a este governo que se deixasse de operações de censura e propaganda e se preocupasse antes em governar e prestar contas ao país pelo colapso dos serviços que tutela?


Fez no passado domingo 50 anos sobre as cheias de 1967, a maior catástrofe natural ocorrida em Portugal desde o terramoto de 1755. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 morreram em consequência da chuva 700 pessoas, tendo 20 mil casas ficado destruídas. No entanto, a verdadeira dimensão da tragédia foi ocultada dos portugueses, já que o governo de Salazar proibiu a revelação do verdadeiro número de mortos, mandando os jornais parar de contar as vítimas a partir de certo momento.

Na altura, o governo tinha poderes para fazer esta operação de censura à imprensa, uma vez que o § 2.o do art.o 8.o da Constituição de 1933 determinava que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do pensamento, de ensino, de reunião e de associação, devendo, quanto à primeira, impedir preventiva e repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos (…)”. Salazar defendia que os portugueses deviam ser levados a “viver habitualmente” e, nesse modo plácido de existir, não podia caber a ocorrência de quaisquer tragédias em Portugal.

Passaram 50 anos, o Estado Novo caiu há décadas e, hoje, o art.o 37.o, n.o 2, da Constituição estabelece que o exercício da liberdade de expressão e informação “não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. Mas, apesar disso, a enorme tragédia dos fogos de Verão em Portugal e a responsabilidade do Estado neste domínio continua a ser escondida dos portugueses. Primeiro, a própria lista dos mortos foi ocultada, a pretexto de segredo de justiça, como se a morte de qualquer pessoa não fosse um facto público, que tem de constar obrigatoriamente do Registo Civil. Depois foi cortado o capítulo de um relatório oficial sobre as circunstâncias da morte das vítimas, a pretexto da protecção de dados pessoais, contra a vontade dos seus familiares, que é a quem compete decidir o exercício dos seus direitos de personalidade após a morte. O Estado, esse célebre “monstro frio” de que falava Nietzsche, bem pode colapsar na altura de prestar socorro às vítimas, mas continua a mostrar-se extremamente eficaz em proteger a circulação de informação prejudicial ao governo.

Mas, como se não bastasse a censura, falta ainda a propaganda. No Estado Novo tínhamos não apenas o Secretariado da Propaganda Nacional como também era sempre possível pedir ao almirante Tenreiro a organização de uma manifestação de apoio ao regime. Hoje, o governo é mais moderno. Limita-se a contratar por ajuste directo uma agência de comunicação para, em parceria com uma universidade, prestar “serviços de recrutamento de participantes para integrar um estudo quantitativo e uma sessão pública no âmbito da iniciativa de avaliação do segundo ano em funções do xxi Governo Constitucional”. Os participantes no “estudo quantitativo” recebem vales de compras a troco de se deslocarem a Aveiro para fazer perguntas ao governo. Tudo isto, naturalmente, pago com o dinheiro dos contribuintes, que é assim destinado a financiar a propaganda do governo.

Seria pedir muito a este governo que se deixasse de operações de censura e propaganda e se preocupasse antes em governar e prestar contas ao país pelo colapso dos serviços que tutela? Não é isso simplesmente o que se espera de um governo?

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990