Quando a rã é mesmo do tamanho de um boi


Apesar do novo paradigma, persistem ainda muitos espécimes humanos com memória suficiente para recordar as travessuras e diabruras de sempre de Marcelo Rebelo de Sousa


É espantoso como as pueris fábulas de La Fontaine reincidem na captura da realidade atual. Há uns tempos, Jerónimo de Sousa arremessou a fábula da rã que queria ser do tamanho do boi para refrear a euforia de Assunção Cristas em relação aos resultados das autárquicas.

Pois, o raio da rã está de volta para retratar a desconversa de comadres e afins em que se transformou a relação entre o Governo e o Presidente da República, em rota de convergência para uma espécie de “vichyssoise- Colherada 2”.

É dos factos da história recente que a relação entre o governo e a presidência da república está sustentada na cama que foi sendo feita. Senão vejamos.

Em 2015, a atual direção nacional do PS decidiu que, pela primeira vez na história da democracia portuguesa, o partido não apoiaria formalmente nenhum candidato presidencial.

Em véspera das eleições, até saiu uma notícia plantada por fonte próxima do primeiro ministro que enunciava a tese segundo a qual não viria mal ao mundo a eminente eleição de Marcelo à primeira, porque a relação pessoal era excelente

Em 2016, o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, foi eleito à primeira volta, com 52% dos votos expressos.

Entre 2016 e junho de 2017, estabeleceu-se um bailado de namoro político de conveniência e sintonia circunstancial que amenizou o clima político, alavancou a ação da solução governativa, catalisou a popularidade política dos protagonistas e gerou uma onda de confiança política, económica e social.

Por contraste com a decrépita relação política anterior entre eleitos e eleitores, a perceção de devolução de rendimentos, a sintonia do amor de conveniência e a proximidade dos afetos estabeleceram um novo paradigma apreciado pelos cidadãos e conveniente para algumas estratégias políticas e poderes instalados no sistema.

Apesar do novo paradigma, persistem ainda muitos espécimes humanos com memória suficiente para recordar as travessuras e diabruras de sempre de Marcelo Rebelo de Sousa, antes e depois do alegado repasto da vichyssoise com Paulo Portas, nas suas diversas encarnações em rota de acumulação de notoriedade e de popularidade. Há traços que são intemporais, da hiperatividade à inteligência na abordagem ao que é preciso ser dito e feito para produzir a adequada empatia com os interlocutores.

O invulgar é a estranheza e choque de alguns, participantes ativos nesta caminhada de neutralizações, de anestesias e de agigantamento da rã, numa relação direta com o Povo, num exercício quase perfeito de gestão das circunstâncias.

Foram meses e meses a enfunar a Presidência da República, muito além das condições naturais propiciadas pelo perfil e pela iniciativa do protagonista político, enquanto se descuidavam pilares relevantes da governação além das reversões, das devoluções dos rendimentos e das medidas simbólicas.

Tivemos uma Presidência atenta aos sinais e uma governação indiferente perante os sinais de anemia dos pilares das funções do Estado, de ineficiência dos serviços públicos por imposição das cativações e dos passivos acumulados e por uma perigosa divergência entre a narrativa política e a realidade.

Por exemplo, foi criada uma unidade para a valorização do Interior em véspera da aprovação do Orçamento de Estado para 2017, sem qualquer projeção nas opções de política orçamental. Além do trabalho de envolvimento descentralizado das lideranças locais, quais foram as medidas integradas adotadas, acompanhadas de recursos financeiros, para reverter a perceção e a realidade do abandono do Interior, da desertificação e do envelhecimento da população. Será que é no Orçamento de Estado para 2018 ou o esforço de reconstrução da área ardida vai absorver todo o esforço de valorização do Interior?

Governar é fazer opções e assumir a responsabilidade pelos resultados dessas opções.

É assim quando se desestabiliza o dispositivo da proteção civil, quando não se está atento às dinâmicas das pessoas e dos territórios ou quando se opta por, em sintonia com as necessidades de sustentação da solução governativa, canalizar o essencial dos recursos disponíveis para a função pública.

Ainda que sem resultados negativos relevantes, é também assim quando se ignoram os sinais de rutura nas forças de segurança, a indigência das condições segurança e do serviço nos transportes públicos, os bloqueios no funcionamento dos serviços públicos que contam para a vida das pessoas ou a degradação das condições de segurança rodoviária em muitas das infraestruturas do país.

Há muito que o Mundo se imunizou de agir perante a morte, as mortes dos atentados, a falta de respostas para o básico ou os desequilíbrios de alguns, era só mesmo o que faltava que o País só se começasse a mexer quando existem ocorrências excecionais.

Deixar que a rã se agigante para ter o tamanho do boi, só poder ser bom para a ilusão da própria, na efémera circunstância do inchaço. Nunca será grande coisa para a realidade sustentada e vivida pelos restantes. Não pode ser choque para ninguém, muito menos para os catalisadores das circunstâncias.

É assim na fábula como na realidade.

NOTAS FINAIS

A cigarra e a formiga No ano passado terão sido despejadas 1931 famílias. Cerca do dobro (91,7%) do número de 2013. Nos primeiros nove meses de 2017, já houve 1480 despejos decretados. São 5,5 famílias despejadas por dia. A narrativa não bate com a realidade.

A lebre e a tartaruga O jejum de anos agita as lebres na corrida deste ano. A adrenalina do momento até faz com que os enjeitados comparem menos de 200 associados com 1200 presentes em assembleia gerais. 189 nem a terminação são. E a terminação é que tem sido o busílis.

 

Militante do Partido Socialista

Escreve às quintas feiras