Droga. “Nós não queremos consumir na rua. A sociedade não tem que levar connosco”

Droga. “Nós não queremos consumir na rua. A sociedade não tem que levar connosco”


Os discursos à volta do fenómeno da droga em Portugal tendem a ser positivos. O país é apontado como modelo de políticas de prevenção e redução de consumo de substâncias ilegais. A Grande Lisboa é mãe de muitos filhos da droga que rondam cantos da cidade para poderem injetar e fumar “cavalo” e crack sem que…


É uma manhã quente de agosto. Nas ruas do centro de Lisboa, o trânsito não ecoa como nos outros meses do ano. Nos passeios, turistas caminham com roupa curta e caras felizes, as esplanadas estão cheias de pequenos-almoços e brunches da moda.

É um Portugal que exporta noções de segurança, um paraíso à beira-mar plantado, com “bom clima, comida e sem problemas de maior gravidade”, descreve um pai inglês que passeia um carrinho de bebé com a esposa, que traz uma criança loira pela mão.

Na Avenida 5 de Outubro fica o consultório do psiquiatra Luís Patrício, técnico de saúde que tem dedicado toda a sua vida profissional à prevenção e ajuda de pessoas com adição a substâncias. Autor de vários livros e projetos, fez parte das equipas de trabalho que pensaram e repensaram o regime geral das políticas de prevenção, redução de riscos e minimização de danos no consumo de estupefacientes.

De óculos redondos e equipado até aos cabelos com material de quem está habituado a trabalhar no terreno, Luís Patrício mostra-nos a sua Mala da Prevenção, projeto que já levou aos quatro cantos do mundo mas cuja possível implementação nunca recebeu uma resposta do Ministério da Saúde. Há 14 anos, Luís Patrício, ex–diretor do Centro das Taipas, enviou um pedido ao Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) para uma possível avaliação do projeto preventivo. Ainda hoje continua à espera de um parecer.

 “Eu só queria que me dissessem se pelo menos achavam que estava bem feito, mas nunca me responderam às cartas”, lamenta. A Mala da Prevenção é conhecida por técnicos e especialistas na área da prevenção de risco do consumo de droga de vários países do mundo. Embora o seu criador seja várias vezes convidado para ir a locais como escolas e universidades mostrar como funciona, não tem reconhecimento a nível oficial.

A vida do profissional de saúde é “muito ocupada”, sendo complicado conciliar o trabalho de rua voluntário e independente com a vida agitada de uma clínica de psiquiatria. Assim, como não há muito tempo disponível, Patrício apressa-se a arrumar todos os livros, exemplares informativos, embalagens que já contiveram substâncias legais e ilegais, autocolantes, cachimbos, testes de alcoolemia, garrafas e vídeos pertencentes ao programa que criou. Em seguida leva-nos até à garagem onde tem o carro estacionado. 

“Têm a certeza que estão preparadas para o que vão ver? Nada de máquinas fotográficas ou objetos de valor. Deixem tudo aqui no consultório.” Seguem-se as instruções, mas leva-se telemóvel para captar imagens. Ao olhar para os pés da repórter, Luís Patrício pede-lhe que mude rapidamente de calçado. “Não imagina o chão que vai pisar, precisa de umas botas.” Depois mostra o percurso que estamos prestes a iniciar. Connosco estará também Jane Monte, pedagoga brasileira original de Salvador da Baía, com 20 anos de experiência de trabalho de rua com toxicodependentes.

Os filhos da droga

O carro não precisa de andar muito até chegarmos ao primeiro local de consumo. Foi um passeio curto pelo centro de Lisboa e chegámos rápido às portas de um bairro social bem conhecido dos residentes da cidade. Luís Patrício abranda o carro e faz sinal. Já consegue ouvir pessoas escondidas. “Estão ali. Taparam-lhes com cimento o outro local onde se juntavam, mas isso não resolve problema nenhum. Eles arranjam sempre um canto novo. Vão já ver as condições em que estão a consumir.”

O psiquiatra tinha razão: ninguém estava realmente preparado para o que se ia encontrar neste dia de agosto, em que as temperaturas subiram até perto dos 30 graus, em plena Grande Lisboa. 

Um homem magro, de 50 anos, sai da pequena sala de consumo improvisada onde se encontra o resto dos homens, que começaram o dia já há algum tempo, movidos pela ressaca de heroína, como nos explicam mais tarde. Está empregado, tem filhos, mas não quer que assistam de perto à vida que leva. “Ligo-lhes todos os dias para me manter por perto, mas não quero que me vejam assim.”

Na mão traz um pedaço de “branca” e outro de “cavalo”. Fuma cocaína e heroína. A metadona do serviço de apoio que lhe receitaram é, segundo Luís Patrício, uma dose “ridícula” de 40 mg. “Isso não ajuda em nada. Como dá para ver, ressaca na mesma e volta sempre ao consumo da heroína e da cocaína.” O homem, a quem chamaremos Joaquim, concorda. “Se não tiver cavalo não me mexo.” Questionado sobre a importância de uma possível sala de consumo assistido, a reação é de ceticismo total: “Não as fizeram há 20 anos, que morria tanta gente na rua, vai ser agora que se vão preocupar em criar condições? Não acredito nisso.”

Hoje só “anda mal quem quer”, já que há informação – o problema é dos que “se meteram nesta vida na altura em que não se sabia nada”. “Nunca injetei na vida, o meu problema é fumar. Fumo cavalo desde os meus 15 anos. Nunca piquei, mas já me morreram dois nos braços a picar, com overdose, e já salvei uma rapariga com um caldo de sal”, conta enquanto nos olha nos olhos. “Quando dei no cavalo pela primeira vez foi a melhor sensação de sempre. Nunca volta a ser igual, depois é só sofrimento.”

Enquanto Joaquim fala connosco, um jovem loiro de mochila às costas, com uma esteira enrolada no topo, dando a sensação de que se trata de um campista, aproxima-se do túnel onde se encontra o resto dos consumidores. Perguntamos a Joaquim se costumam aparecer muitos estrangeiros viciados. “Então não há? Este é um deles. É um miúdo alemão, vem sempre aqui ter.”

A polícia costuma aparecer por ali e o desfecho depende sempre do caráter e do humor dos agentes de serviço. “Se vocês estiverem aqui, eles chegam e vão embora. Se forem os tranquilos, chegam cá, pedem a identificação à turma, pedem para não consumirmos à frente deles e lá vão embora à vida deles. Mas há outros, menina, chegam aqui, tiram-nos a prata, atiram com tudo para o ar, batem-nos e ficam-nos com o cavalo e a branca.”

Vícios de anos

Joaquim já largou três vezes o vício, mas voltou sempre ao “inferno”. “Eu já deixei várias vezes o meu contacto nas carrinhas, mas nunca me ligam, e eu preciso de ajuda porque a trabalhar não consigo ir às consultas quando eles querem. E a darem-me tão pouca metadona tenho de curar isto com coca.” O homem de braços finos e cara encovada despede-se, “[mandou] uns riscos e o estômago está às voltas”, mas dá-nos sinal para avançarmos e falarmos com os restantes consumidores.

Entramos na sala de consumo improvisada por este grupo, que se junta todos os dias num cantinho coberto por cimento, à entrada de uma garagem. É escuro mas limpo, há uma vassoura encostada à parede. Jane, pedagoga brasileira, está admirada com o cuidado que os próprios tiveram em manter tudo asseado.

Desde que chegámos, já dez homens consumiram heroína e cocaína naquele canto de um bairro central de Lisboa. Dois deles têm menos de 30 anos, estão suados, têm os olhos encovados, braços magros e dentes gastos. Um deles, de olhos verdes, olha-nos enquanto prepara a dose. Há papel de estanho, a conhecida “prata”, espalhado por todo o lado à volta dele. Assim que o caldo fica preparado avisam que não querem faltar-nos ao respeito e consumir à nossa frente “por uma questão de educação”. “A sociedade não tem que levar connosco”, diz um dos mais velhos, vindo de Angola. Enquanto saímos, o homem que estava com as roupas mais arranjadas, mas com um tom de pele amarelado – que, segundo Jane, já deverá ter um problema de saúde avançado -, despede-se com um pedido: “Vejam lá se essa reportagem nos ajuda. Faz-nos muita falta uma sala onde possamos fumar com condições, sermos acompanhados por especialistas que nos ajudem a sair desta vida.”

Salas de consumo e recolha de seringas

Qual é a diferença entre uma sala de chuto real e uma possível sala de consumo? “É o mesmo que fazer as necessidades num canto na rua ou fazer uma casa de banho normal, limpa e com as condições de higiene necessárias. Há quem não aguente o desespero e faça o que tem a fazer na rua. Nas salas de consumo, as pessoas fazem o que têm a fazer em condições dignas e com acompanhamento.”

A lei que previa as salas de consumo assistido surgiu em 2001. A intenção era dar respostas na área da redução de riscos e minimização de danos, medidas que incluíam programas para consumo vigiado cujos objetivos, descritos em Diário da República, passavam pelo “incremento da assepsia no consumo intravenoso e consequente diminuição de riscos inerentes a esta forma de consumo, bem como a promoção da proximidade com os consumidores, de acordo com o respetivo contexto sociocultural, com vista à sensibilização e encaminhamento para tratamento, através da criação de locais de consumo”. A iniciativa de criação das salas de consumo assistido deveria partir dos municípios.

Em maio, aquando da mais recente inauguração das novas instalações do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD), Adalberto Campos Fernandes disse que tem de ser discutida “tecnicamente e, depois, politicamente, de uma maneira alargada”, a criação destas salas. Mas técnicos como Luís Patrício não admitem este discurso. “A discussão foi feita há muitos anos. As salas de consumo permitem o contacto direto, valor acrescido em redução de riscos. Não o fazer e negar a realidade do seu benefício é pura irresponsabilidade”, explica o médico. “Portugal legislou em 2001 e depois adormeceu. Terá sido só para fazer boa figura? Não quero acreditar que tenha sido para enganar quem sofre ou quem quer ajudar. É apenas hipocrisia. Ajudei dezenas de profissionais antes de isto ser legislado. Visitámos salas de consumo em Espanha, Alemanha, Holanda e Suíça.” 

Mas para o especialista que acompanha as pessoas com problemas de adição, o problema não está só na falta de salas de consumo. A própria troca de seringas está em “péssimo” estado. “É um sistema deficiente, vergonhoso. Nem todos os locais de consumo estão em bom estado como o que viram, ora espreitem ali para dentro.”

Chegámos a uma zona residencial. Há uma entrada para um terreno coberto de árvores: lá dentro, um mar de seringas e um garrafão pendurado numa árvore. “Este é o modelo de recolha de seringas tipicamente português”, diz o psiquiatra em tom de sarcasmo. “Onde estão as máquinas de troca de seringas?”, questiona Jane, que conhece o sistema adotado em vários países do mundo. As máquinas a que se refere existem no centro de Paris, por exemplo. São máquinas que se encontram até em estações de comboios. As pessoas colocam as seringas numa gaveta, recebem uma ficha que colocam numa entrada ao lado e que, em troca, lhes dá um kit esterilizado. De entre as árvores surge uma senhora bem arranjada. É professora, tem 60 anos e fuma cocaína. Consumiu durante três anos heroína, tem a voz arrastada.

“Vim matar a ressaca”, explica. Recorreu três vezes a uma clínica para a desintoxicação da heroína, mas as recaídas e o dinheiro que gastava na recuperação não ajudaram. “É preciso muito acompanhamento, ajuda. Dei por mim a cair na cocaína porque a metadona não era suficiente.” Apaixonou-se por um toxicodependente e terá sido essa a sua desgraça, que a levou a experimentar droga aos 40 anos. “Eu que falava aos meus alunos sobre o quão más eram as drogas, sabia lá eu que isto era assim tão difícil, tão viciante. Eu bem avisava os meus alunos, mas falar é diferente de viver.” Já tentou a reforma por invalidez, mas não tem tido sucesso. Apesar dos diagnósticos psicológicos atestarem a sua incapacidade, é forçada a continuar a lecionar.

Luís Patrício explica que a maioria dos dependentes em substâncias têm doenças mentais não tratadas. “Se cuidássemos de cada doente como um só, com a devida atenção e acompanhamento, aí sim, haveria sucesso no combate ao consumo de estupefacientes, mas isso não acontece e não são uns meros miligramas de metadona que resolvem a adição”, explica.

A rota prossegue até que chegamos àquela que foi a casa da maior concentração de consumidores de droga na década de 90 e inícios dos anos 2000. Falamos no Casal Ventoso.

Nas ruas veem-se os que vendem “branca e cavalo”. Uma carrinha da PSP cheia de oficiais circula. “Está tudo bem por aqui?”, perguntam ao verem-nos caminhar sobre seringas, compressas ensanguentadas e fezes. Há kits espalhados pelo chão de vários locais. Tudo indica que este foi um local de consumo recente, uma vez que há cinzas, pedaços de colchão queimados, tecidos sujos de carvão. “As autoridades, mais uma vez, vieram cá destruir isto para eles irem para outro lado”, comenta Luís com Jane. Subimos por um caminho de terra e chegamos às traseiras de um prédio. Um homem de muletas está a subir um muro para se aproximar da nossa margem. Para passarmos, é preciso ginástica e tentar não cair em cima de nenhuma seringa. Ao fundo das escadas de um cubículo estão cinco homens a consumir heroína e cocaína. “Já não é como antigamente, mas ainda é um caos”, conta-nos um dos cinco homens a consumir num canto abrigado do vento, por trás de um prédio.

“Queimaram-nos o sítio onde costumávamos consumir. A polícia chega aqui, queima isto tudo e nós temos de nos mudar para outro canto. Ninguém aqui quer que o mundo lá fora tenha de nos ver a mandar”, explica um deles, sentado num tijolo, que aproveita para contar que já foi atleta de futebol da primeira divisão. “Tinha uma vida muito boa, muito dinheiro, amigos, tudo o que se podia querer, até que mandei isto.” Graças ao bigode, parece o mais velho de todos. Ao lado, um dos parceiros conta-nos que é pai e que nunca faltou nada à criança. Estão sentados em pedras, sobre um mar de dejetos e desperdícios. No chão, milhares de preservativos por usar. “Dão isto, mas com o vício nada se levanta, uma pessoa não usa”, comenta-se.

Novo bairro

É inegável a transformação que o bairro sofreu. Há prédios, serviços, restaurantes e cafés, e famílias estáveis. Há até quem tenha hortas. Mas, paralelamente, o problema persiste na quantidade de pessoas que se injetam à sombra das árvores pequenas, há poucos anos plantadas. Cada árvore é um círculo de resíduos com aspiração a sala de consumo.

Os prédios em ruínas estão selados. Não há portas, janelas, ou varandas, muito menos abertura para possíveis recantos.

“Tenho duas licenciaturas, sou culto, mas preciso de ajuda. Conhecem alguém?”, pergunta um homem com óculos de sol que, na verdade, já tem 40 anos, embora pareça ainda jovem. Tem consumido heroína em recantos do Casal Ventoso. Perguntamos-lhe o que pensa sobre a possível construção de salas de consumo, mas a resposta vem cheia de uma ironia amarga: “Então, se é ilegal consumir, eles iam construir um sítio para eu cometer a ilegalidade de forma mais cuidada? Era muito bom, mas não acredito nisso.”

As drogas que circulam nas nossas ruas

Quem trabalha nas ruas com as pessoas que consomem droga não se conforma com o que viu em algumas horas de passeio por Lisboa. Habituada às favelas brasileiras, a pedagoga Jane Monte explica que este é um trabalho ingrato, já que as leis e as políticas são feitas por pessoas que passam pouco tempo a trabalhar de perto com os toxicodependentes – “se é que passam algum”. Segundo Jane, há duas linhas de intervenção: a política e a que coloca o respeito pela vida humana no primeiro de todos os lugares. “Quem anda na rua não anda no combate à droga. Nós não combatemos nada, nós acompanhamos, ajudamos, conversamos e orientamos, sempre tratando de cada ser humano como um só.

As políticas tratam números e pessoas como um todo, o que não funciona.” Segundo Maria João Caldeira, chefe do Setor de Drogas e Toxicologia do Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária, uma das maiores preocupações da PJ é que os consumidores não têm noção do que estão a consumir, uma vez que não há controlo das entidades perante o que é vendido nas ruas.

“Estas substâncias surgem para compensar a ilegalidade das outras. Cá temos uma lista de substâncias proibidas, então surgem outras para substituir”, explica. Segundo Maria João Caldeira, cabe à ASAE a fiscalização, que acaba por só atuar a nível de estabelecimentos comerciais. “Como é que um consumidor de um pó branco, que acha que está a usar cocaína, vai saber que está a consumir um MD, ou uma outra sintética, muitas vezes feitas na China e introduzidas no mercado através do dealer – que não está a fazer nenhum crime ao vendê-las -, mas que para o consumidor pode ser catastrófico?”

Segundo a especialista, a heroína em Portugal sempre foi de má qualidade e está cada vez pior, assim como a cocaína, que vem misturada com várias substâncias perigosas, trazendo enormes perigos aos que as consomem.