Globalmente presos por arames


O futuro é imprevisível, mas o passado está cheio de exemplos de civilizações que não resistiram ao seu esplendor, entrando em declínio e queda irreversíveis


Os ataques cibernéticos e anomalias técnicas que têm atingido globalmente empresas e serviços públicos, e já paralisaram companhias aéreas, assim como os repetidos ataques terroristas, até há pouco reivindicados pela Al-Qaeda (“A Base” ou “A Rede”) e, agora, também pelo Daesh ou Estado Islâmico, vieram salientar, uma vez mais, até que ponto vivemos “presos por arames”, sob a ameaça ou na dependência de redes globais que escapam a qualquer previsibilidade e ao controlo directo ou indirecto por parte dos cidadãos e, mesmo, dos governos e organizações internacionais. De facto, são múltiplas e consideráveis as redes globais que consideramos indispensáveis ao nosso dia-a-dia, como é o caso, por exemplo, da electricidade e de outras redes energéticas, sem termos realmente a noção de quão sofisticadas e vulneráveis são essas redes quer a ataques terroristas (os bárbaros do nosso tempo), quer a anomalias e falências técnicas de toda a espécie.

A electricidade assumiu efectivamente, desde há muito, um papel central e preponderante no nosso quotidiano, tornando-se cada vez mais indispensável para dar resposta a necessidades que não param de aumentar nas sociedades contemporâneas. A nossa vida está cada vez mais dependente de sistemas técnicos globais desmesurados que reclamam abastecimento constante e massivo de energia. Como se salienta num ensaio publicado pela revista francesa “La Décroissance”, é bom não esquecer que todos os objectos eléctricos que nos cercam não são mais do que os terminais de uma gigantesca infraestrutura mundializada à qual estamos conectados pelas tomadas incrustadas nas paredes das nossas habitações, tal como um embrião está ligado ao seu cordão umbilical. E o que é grave é que essas gigantescas redes globais estão a matar as redes locais.

A globalização actual – com a sua complexidade, o seu grau de especialização, de interdependência em rede, de sofisticação e de vulnerabilidade – faz-nos inevitavelmente evocar as razões do colapso da economia antiga, estreitamente ligado à extinção do Império Romano. É esse, aliás, o tema dum magnífico livro publicado em 2005 sobre “A Queda de Roma e o Fim da Civilização”, do arqueólogo britânico Bryan Ward-Perkins, que nos explica que a economia antiga era um sistema de tal modo complexo e interligado que a sua própria sofisticação a tornou muitíssimo frágil e pouco adaptável à mudança resultante da insegurança e do caos que levaram à queda de Roma, na sequência da invasão do Império Romano do Ocidente pelos bárbaros oriundos do norte.

Segundo explica Ward-Perkins, a especialização e sofisticação do período romano, ao permitir uma ampla distribuição de mercadorias de alta qualidade pela sociedade global de então, acabou por destruir não só a perícia local como as próprias redes locais que, no período pré-romano, tinham proporcionado uma complexidade económica de nível mais baixo. Foram precisos séculos para que os povos do antigo império readquirissem a perícia técnica e as redes regionais que os levariam de novo a esses níveis de sofisticação pré-romanos, como salienta Ward-Perkins.

Embora a economia antiga não tenha sido, obviamente, tão complexa e intrincada como a do mundo desenvolvido do século xxi, é, porém, importante e inevitável a comparação com o mundo ocidental contemporâneo. Hoje, tal como antes, se é verdade que a complexidade económica tornou acessíveis mais mercadorias de qualidade produzidas em massa, não é menos verdade que tornou as pessoas mais dependentes de especialistas e semiespecialistas – a trabalhar, tantas vezes, a milhares de quilómetros de distância – para conseguirem prover às suas necessidades materiais. E hoje, tal como antes, se a produção especializada falhar, por razões técnicas ou outras, é praticamente impossível passar de imediato a uma autoajuda eficaz. O grau de especialização e dependência que atingiu o mundo contemporâneo é incomparavelmente mais elevado do que o atingido no mundo antigo. Apesar disso, a enorme e brutal desintegração económica ocorrida no final do Império Romano foi quase certamente resultado directo dessa especialização. Dá muito que pensar.

O futuro é imprevisível, mas o passado está cheio de exemplos de civilizações que não resistiram ao seu esplendor, entrando em declínio e queda irreversíveis, até à extinção. Além da especialização e dependência de redes globais complexas, evoquemos também ecocídios resultantes da exploração de recursos naturais até à exaustão, de alterações climáticas, da destruição do meio ambiente, de guerras, de secas, da fome, da incapacidade de adaptação de populações inteiras às mudanças. Da tragédia da ilha da Páscoa ao desaparecimento dos vikings, do esgotamento e queda da civilização maia ao declínio e queda do Império Romano do Ocidente, exemplos não faltam.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990