Só falta sair do caixote do lixo


Saímos do PDE (só virtualmente, diga-se) e exultámos. Quando sairmos do caixote do lixo das agências de rating, pularemos de alegria


Agora que já exultámos com a saída do procedimento por défice excessivo (PDE) em que a Comissão Europeia nos tinha “entalado” há vários anos – com o mérito dessa saída atribuído a todos (portanto, também a mim e restante família) pelo generoso PR que temos –, passámos a aguardar ansiosamente que nos tirem do caixote do lixo para onde fomos lançados por três empresas privadas norte–americanas mais conhecidas como agências de rating (notação financeira), donas disto tudo em parceria com os bancos. Enfim, uma humilhação! Pelo simples facto de retirarem um A ou dois AA ou um triplo AAA a qualquer produto financeiro ou a qualquer país, essas agências privadas de notação financeira têm o poder de abalar mercados e governos. Arrogam-se o direito de medir o “valor” de um produto financeiro (quantas vezes “tóxico”!), ou deste ou daquele país em crise, mas elas próprias não são avaliadas nem sancionadas – nem se atiram para o caixote de lixo que nos reservam – quando calha errarem escandalosamente, como sucedeu com os produtos “tóxicos” gerados pelos bancos que estiveram na origem da crise brutal que eclodiu em 2008, nos EUA, e que rapidamente alastrou à Europa e ao mundo!

É assustador pensar como os países e os povos estão tão dependentes dos instrumentos financeiros privados que dominam o mundo. Como explicaram os economistas François Morin e Bernard Maris, as democracias capitalistas renunciaram, nas décadas de 1970 e 1980, ao seu poder de criação monetária, isto é, à possibilidade de criarem moeda para sustentarem os seus próprios projectos. A moeda tornou-se, assim, um bem privatizado. A criação de moeda passou a ser exclusiva dos bancos privados, através da concessão de crédito, e dos bancos centrais, tornados independentes dos Estados, através da criação de papel–moeda. Por todas as razões e mais esta, seria indispensável que os Estados recuperassem a sua soberania monetária. Mas o regresso às moedas nacionais deveria implicar a criação de uma “moeda comum” (não confundir com “moeda única”) à escala internacional que permitisse estabilizar os câmbios – (re)construindo, por exemplo, o sistema monetário que Keynes imaginou em 1944, sob a designação de bancor, ou seja, uma “moeda comum” à escala internacional que deixaria subsistir as moedas nacionais locais. Claro que os EUA recusaram essa proposta para privilegiarem o dólar. E claro que a reconstrução do sistema monetário não está na ordem do dia.

Estamos, assim, duplamente dependentes dos bancos privados e das agências privadas de notação financeira. E como a moeda passou a ser um bem privatizado, com evidente prejuízo da soberania dos Estados, o crédito é gerado e distribuído em função da situação dos bancos, a qual, por seu turno, está dependente da situação dos mercados financeiros. Uma tal dependência é absolutamente antidemocrática, porque é dominada por poderes paralelos e irresponsáveis sem qualquer legitimidade eleitoral. Ora, é isso que desvitaliza a democracia: a usura das instituições democráticas e a passividade de uma classe política cada vez mais desconectada da sociedade e inclinada a ceder aos diktats das autoridades ilegítimas que se foram transformando, sorrateiramente, em autênticos poderes paralelos que não estão submetidos a qualquer controlo político democrático.

É tal a sujeição aos instrumentos de “tortura” manipulados pela Comissão Europeia, pelo FMI, pelas agências de rating e pelos bancos privados nacionais e estrangeiros que pulamos de contentamento quando eles nos aliviam um pouco a pressão das algemas. Saímos do PDE (só virtualmente, diga-se) e exultámos. Quando sairmos do caixote do lixo das agências de rating, pularemos de alegria. Convirá não esquecer o Pacto Orçamental de austeridade perpétua imposto pela dupla Merkel-Schäuble e aceite em Portugal pelos partidos do velho “arco da governação”. Mas não quero estragar a festa aos conterrâneos. Até lhes recomendo que oiçam o belíssimo moteto “Exsultate, Jubilate de Mozart”. E depois, “prontos”: quando sairmos do lixo, exultai e pulai de júbilo, portugueses!

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990