É mesmo conveniente que a justiça se faça


A independência das magistraturas portuguesas tem assegurado estabilidade social e política à nossa democracia


Durante esta semana, o jornal espanhol “El País” publicou um cartoon de El Roto dedicado à justiça.

Sentado a uma secretária, tendo à frente o que pode parecer um processo ou um livro aberto, pode ver-se um senhor de óculos, meio calvo, aspeto pesado, engravatado, a roupa insinuando uma beca de magistrado e ar pensativo.

A legenda completa a ideia: “Não é conveniente que as pessoas pensem que se faz justiça, pois poderiam alimentar esperanças…”

No mesmo dia, o jornal noticia e comenta a votação de uma moção de censura inédita no parlamento espanhol.

Tal moção reprovou, explicitamente, não só a conduta do ministro da Justiça desse país, como, mais espantosamente ainda, a atuação profissional do procurador-geral e do procurador anticorrupção.

A censura visou, em concreto – o que é extraordinário –, o comportamento daquelas individualidades em relação a processos conhecidos, que foi interpretado pela maioria dos parlamentares como procurando proteger políticos implicados em atos de corrupção graves.

Tem sido noticiada também, entretanto, a crítica violenta que os media norte-americanos têm feito à alegada interferência do presidente dos EUA no curso da justiça desse país.

Refiro-me à convulsão originada pela demissão do diretor do FBI, que teria em vista, segundo os media, evitar que se continuasse a investigar personalidades próximas dos círculos da Casa Branca.

O que tais notícias nos revelam, afinal, é a falta de credibilidade dos sistemas de investigação que dependem de ministérios públicos demasiado dependentes das opções políticas.

Tal dependência não reside, apenas, nos amplos poderes dos executivos na nomeação e demissão dos titulares máximos de tais autoridades, mas respeita, sobretudo, aos laços estatutários de obediência política que eles mantêm no exercício das suas funções.

Há entre nós quem sustente, quando se fala da independência das autoridades judiciárias, que ela reside, especialmente, no caráter dos titulares no momento em que têm de decidir.

É claro que tal fator é fundamental.

Em Espanha, não por acaso e exatamente devido ao caráter de alguns deles, nos últimos tempos, os titulares da Procuradoria-Geral não aquecem os lugares: uns demitem-se, outros não são reconduzidos.

Nos EUA, em situação de crise e quando se supõe que os titulares dos cargos não estão em condição de agir com independência, o sistema acaba por sobreviver através da nomeação extraordinária de procuradores especiais para investigarem os casos mais gritantes.

Não quero falar aqui do Brasil, pois a procissão ainda vai no adro: o procurador- -geral concluirá em breve o seu mandato e ninguém pode adivinhar como terminarão as muitas investigações em curso.

A corrosiva ideia do cartoon de haver quem acredite ainda que não é conveniente que as pessoas pensem que a justiça é para se fazer começa hoje a confrontar-se com uma dura realidade: as pessoas querem mesmo que a justiça seja feita.

Os regimes, governos e sistemas judiciais que teimam em querer manter a estratégia das aparências e das expetativas baixas debatem-se hoje com a reprovação frontal dos cidadãos e enfrentam a deslegitimação geral dos seus mandatos.

O sistema de justiça português, pesem as suas conhecidas dificuldades organizacionais e estruturais, assenta em princípios de independência que têm conseguido, quase sempre, garantir as expetativas de objetividade e isenção que dele se esperam.

Essa sua característica tem assegurado estabilidade social e política à nossa democracia, o que contribui, também, para frear os tão receados populismos.

 

Jurista, Escreve à terça-feira