O “Milagre de Fátima” não existiu


Negar as “aparições” não é novidade, por parte de ateus e de agnósticos como eu. Novidade, isso sim, é ouvir vozes da própria Igreja negá-las


A liberdade e a democracia em que vivemos há mais de 40 anos permitem que eu afirme, sem cometer qualquer sacrilégio, que o “Milagre de Fátima” nunca existiu. É produto do analfabetismo, ignorância e crendice de três crianças aterrorizadas pela imagem de um Deus cruel, vingativo e castigador, tal como lhes era apresentado pela pregação constante do terrível conteúdo do livro “Missão Abreviada”, do padre Couto, publicado em 1859, destinado “particularmente (ao) povo de aldeia” para “despertar os descuidados, converter os pecadores e sustentar o fruto das missões”.

A própria Igreja começou por não dar crédito à narrativa das “aparições”, sobretudo à conversa de Lúcia – os seus primos Francisco e Jacinta nunca abriram a boca – com uma Nossa Senhora “sem cabelo e sem orelhas” à vista, que falava português fluentemente e que Lúcia ganhou o hábito de interpelar com um “Vossemecê que me quer?” quando ela lhe “aparecia”. E a verdade é que a Igreja só reconheceu oficialmente a primeira “aparição” – houve imensas, como se sabe – 13 anos depois, em 1930, na onda do golpe militar do 28 de Maio (de 1926) e já com Salazar no poder, a preparar a institucionalização do regime ditatorial do Estado Novo. O “milagre de Fátima” tornou-se uma arma de arremesso contra a República, a liberdade e a democracia, contra o ateísmo e o comunismo, numa clássica aliança entre “a espada e o hissope” sob a égide do ditador Salazar.

Negar as “aparições” não é novidade, por parte de ateus e de agnósticos como eu. Novidade, isso sim, é ouvir vozes da própria Igreja negá-las. Como é o caso do professor universitário Anselmo Borges, padre da Sociedade Missionária Portuguesa, ao afirmar, em entrevista ao “Expresso”: “É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima. Uma aparição é algo objectivo.” Acrescentando, mais adiante: “É necessário evangelizar Fátima, ou seja, trazer uma notícia boa. Porque, mesmo para aquelas crianças, aquela não foi uma notícia boa: que mãe mostraria o inferno a uma criança?” Fê-lo a mãe de Lúcia! Mostrou-o aos filhos, influenciada pela descrição feita no livro “Missão Abreviada”. Assim: “O Inferno é uma cova de bichos e uma fogueira muito grande e quem faz pecados e não se confessa vai para lá e fica sempre a arder, sem nunca de lá sair.” Isto ainda antes das “aparições”!

Mais significativas, todavia, por se tratar do bispo-delegado do Conselho Pontifício para a Cultura do Vaticano, são as recentes declarações de D. Carlos Azevedo feitas aos jornais “Expresso” e “Público”. Diz ele que “Nossa Senhora não aprendeu português para falar com Lúcia” e que “a presença de Maria não vem do céu por aí abaixo”. Quanto aos três pastorinhos, diz que “as crianças tiveram um carisma profético” (seja lá isso o que for) e que não houve “aparições”, mas sim “visões”: “Esse é o termo exacto. As visões, de vários tipos, são fenómenos místicos, espirituais, não físicos.” E explica que “precisamos de usar a linguagem exacta para não cair no ridículo”. Pobre irmã Lúcia!

Poderia pensar-se que estas declarações seriam arrasadoras para as absurdas, delirantes e ridículas “Memórias da Irmã Lúcia”, que esta pobre mulher (sequestrada pela Igreja desde a infância, depois de os primos terem morrido) terá redigido por imposição do bispo de Leiria, a quem ela se dirige nos seguintes termos: “Obedeço (…) à vontade de Vossa Excelência Reverendíssima, que, para mim, é a expressão da vontade de nosso bom Deus.” Mas não, o bispo-delegado para a Cultura, D. Carlos Azevedo, não vai nisso. Seria estultícia da sua parte derrubar o grande pilar em que assenta o embuste de Fátima. E até diz isto: “A própria Lúcia, ao longo das suas memórias, vai interpretando, ganhando cultura espiritual e teológica que não tinha aos dez anos.” O bispo-delegado também delira!

D. Carlos Azevedo considera mesmo “espantoso como crianças daquela idade, num lugar sem cultura teológica, recebem uma mensagem com uma densidade tão forte e implicações tão grandes na história da humanidade”. Aqui, o bispo-delegado parece imbuído do espírito infernal da já referida “Missão Abreviada”. Não o escandaliza nem espanta – ao contrário do que sucedeu ao padre Mário de Oliveira – que “aquela Senhora que as crianças dizem ver e ouvir, nos dias 13 dos meses de Maio a Outubro de 1917, apesar de se dizer vinda do céu, isto é, de Deus, não tenha aparecido para as libertar do medo e convidá-las à alegria de viver. Pelo contrário, começa por lhes anunciar, às duas mais novinhas e também mais aterrorizadas, que brevemente as vai levar para o céu, maneira eufemística de dizer que elas vão morrer antes do tempo”. Para serem “santificadas” cem anos depois. Perante o Papa Francisco, o Presidente Marcelo e a oportuna “tolerância de ponto” de António Costa…

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990