Escravatura e terror colonial


O Presidente da República falou recentemente sobre as responsabilidades do Estado português na abolição da escravatura em partes do seu território. Será que o abolicionismo “lava mais branco(s)”?


Quando penso na escravatura e no terror colonial, que causaram a mutilação e a morte de vários milhões de “indígenas” da chamada “África negra”, tenho presentes dois livros essenciais: “O Coração das Trevas”, extraordinária novela de Joseph Conrad publicada pela primeira vez em 1902; e “O Fantasma do Rei Leopoldo – O terror colonial no Estado do Congo 1884-1908”, impressionante ensaio histórico do jornalista norte-americano Adam Hochschild publicado pela primeira vez em 1998.

Mas convirá acrescentar a esta curta bibliografia pelo menos mais estes dois textos: “O Solilóquio do Rei Leopoldo”, panfleto escrito em 1905 por Mark Twain para caricaturar o monarca belga assassino; e “O Crime do Congo”, escrito em 1909 por Sir Arthur Conan Doyle, criador do genial Sherlock Holmes. Para Sir Arthur, os terríveis crimes cometidos no Congo superavam todas as atrocidades anteriores, nesta e noutras paragens africanas dominadas pelas potências coloniais europeias: “Houve expropriações como a de Inglaterra pelos normandos, ou a da Irlanda pelos ingleses. Houve chacinas em aldeias como as dos sul-americanos pelos espanhóis ou as das nações submetidas pelos turcos. Mas nunca antes tinha havido semelhante mistura de expropriações e carnificinas absolutas realizadas sob o odioso disfarce da filantropia e tendo por motivo o mais vil dos interesses comerciais.”

Claro que há outros testemunhos imprescindíveis, como o do Relatório Casement, escrito em 1903 pelo diplomata irlandês Roger Casement, que anotou com meticulosidade burocrática as trapaças e atrocidades tremendas de que teve conhecimento como, por exemplo, as cestas cheias de mãos cortadas tanto a adultos como a crianças. Roger Casement era anti-imperialista e acabou por ser executado.

Também vale a pena contar um episódio passado com o explorador Henry M. Stanley (esse mesmo, o do “Doctor Livingstone, I presume”), contratado pelo rei Leopoldo para “espetar” as lanças deste em África: “Tinha comprado em Londres várias baterias eléctricas, as quais, ao fixá-las no braço por baixo da casaca, comunicavam com uma fita que passava pela palma da mão do irmão branco, e quando este dava ao irmão negro um cordial aperto de mão, o irmão negro ficava muito espantado perante a tão grande força do irmão branco, porque o deixava a cambalear só com esse fraterno aperto de mão. Quando o nativo lhe perguntava sobre a tão grande disparidade de forças entre o seu irmão branco e ele, dizia-lhe que o irmão branco até era capaz de arrancar árvores.” E assim Stanley conseguiu convencer vários chefes africanos a entregar as suas terras ao rei Leopoldo da Bélgica, por via de tratados por eles firmados.

Vem isto a propósito de recentes afirmações do Presidente da República acerca da escravatura e das responsabilidades históricas do Estado português na sua abolição em partes do seu território. Num artigo notável dado à estampa no “Público” (a 18 de Abril), o historiador Miguel Bandeira Jerónimo (ICS de Lisboa) e o investigador José Pedro Monteiro (CES de Coimbra) dizem que as afirmações do Presidente “revelam-se particularmente desfasadas das realidades histórica e historiográfica”, lembrando que “a tolerância com o tráfico de escravos e a escravatura imperou durante todo o século xix” e que a sua “abolição de jure não acarretou uma emancipação de facto nem tinha tal objectivo” (supostamente, o da adesão de Portugal “a um ideal humanista e virado para o futuro”). E denunciam que “a insistência na higienização do passado e no obscurecimento das partes espinhosas da história nacional é constante”.

Noutro artigo, quanto a mim lamentável, publicado no mesmo dia e no mesmo jornal, o “historiador e romancista” João Pedro Marques afirma que as declarações do PR, que ele exalta, “incomodaram aqueles que ainda gostam de pensar a escravatura à maneira iluminista, como uma culpa ocidental, e que, em conformidade, ainda exigem uma expiação, mesmo que apenas em forma verbal, na velha tradição marxista-leninista da autocrítica”. Ora, é precisamente este o meu caso. Embora nunca tenha sido nem marxista nem leninista, e considere que a autocrítica não é um exclusivo dos seguidores de Marx e de Lenine. Mas é óbvio que não sou adepto de “expiações” rituais, tal como não acredito em “milagres”.

Todavia, o distinto “historiador e romancista” não se ficou por ali. Escreveu também isto: “Os que gostam de acentuar o papel dos países ocidentais nas muitas injustiças inerentes à escravatura esquecem-se geralmente de dizer que foram esses mesmos países que puseram fim a tais injustiças.” O que é, no mínimo, uma afirmação extraordinária! Séculos de escravatura e terror colonial, com milhões de mutilados e chacinados, são pura e simplesmente “branqueados” pelo supremo e corajoso “sacrifício” que consistiu na abolição da escravatura. Será que o abolicionismo lava mais “branco(s)”? Haja Deus…

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990