Um herói dos nossos tempos


Há momentos em que a história acelera e destrói as promessas de que ela seria sempre igual. Como dizia Mao: “Rejeitai as vossas ilusões e preparai-vos para a luta”


Mussolini tinha dado as ordens para fazerem aquele cérebro parar de pensar durante 20 anos. Os desejos do ditador tinham-lhe tirado a liberdade, mas não o tinham impedido de pensar. O comunista Antonio Gramsci ia morrer sem ver a liberdade, mas pensaria até ao fim. Para o futuro, quando a Itália pendurasse os seus fascistas, ficariam os seus “Cadernos da Prisão”. Numa altura que o mundo era negro e o fascismo dominava mais de metade da Europa, ele não tinha perdido o otimismo do coração nem o pessimismo da razão. “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros” – deixou escrito em tinta aquilo que a vida lhe dizia.

Neste ano de 2017 passam 100 anos da Revolução Soviética de Outubro, 150 anos da publicação do primeiro volume d’“O Capital”, escrito por Karl Marx, 50 anos do assassinato de Che Guevara, também meio século da publicação na América Latina dos “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, e 500 anos desde que Martinho Lutero afixou o manifesto da sua revolta na porta da igreja.

Quando caiu a União Soviética, garantiram-nos que a história tinha acabado e os acontecimentos entrado em greve permanente. Apesar do desfile das mortes e bombardeamentos, garantiram-nos que o chamado capitalismo democrático era o ponto máximo e inultrapassável da humanidade. Não havia capitalismo sem democracia nem democracia que não fosse capitalista.

Chegados a 2017, o Fórum de Davos, onde os donos do mundo exibem o futuro que nos rodeia, é inaugurado pelo presidente da China e dirigente de um partido dito comunista que dirige o capitalismo com a maior taxa de sucesso no planeta. No mundo mandam líderes com Xi Jinping, Putin, Erdogan e Donald Trump. A desigualdade de riqueza no mundo ultrapassou os tempos da Grande Depressão de 1930, que só foi resolvida com as dezenas de milhões de mortos da ii Guerra Mundial. Os números revelam o crescimento dos muros do capitalismo: pela primeira vez, os 1% mais ricos têm mais riqueza que os 99% restantes; as oito pessoas mais ricas do mundo detêm mais riqueza que 3,6 mil milhões das pessoas mais pobres, metade da população mundial.

Há várias coisas que são claras em 2017: a história não está em greve, todos os dias as coisas mudam e, muitas vezes, para pior; o capitalismo não é democracia; e a desigualdade é a base de regimes políticos cada vez mais autoritários.

Os 30 anos de ouro que se seguiram à ii Guerra Mundial viram redistribuir-se a riqueza criada pela maioria da população e criar-se o chamado Estado social. Essa situação não foi oferecida, mas conquistada pelo movimento operário, com a ajuda da existência da chamada ameaça comunista corporizada pela União Soviética.

O neoliberalismo, no fim dos anos 70, começou a destruir o emprego e o movimento operário, e a dar a fatia de leão do rendimento ao capital. Este processo foi acelerado com o fim da União Soviética. A democracia não se pode esgotar em eleições, mas expressa-se pela ideia de uma pessoa, um voto; no capitalismo, manda mais quem mais dinheiro tem. Quanto mais poder tem o capital, quanto mais desiguais são as nossas sociedades, menos democrático é o nosso sistema político. Por todo o lado, a contradição entre democracia e capitalismo está a ser resolvida pelo autoritarismo. Os capitalistas tomam diretamente o poder com o mesmo método com que se procedeu às privatizações: antes de se privatizar um serviço, os governos privatizadores descapitalizavam-nos e tornavam-nos tão maus que a população estava ganha para qualquer mudança.

Não é, pois, de admirar que estudos sociológicos, citados pela revista “Philosophie Magazine”, digam que apenas 10% dos europeus acham que eleger os seus dirigentes tenha alguma importância. Ao tornar-se administração do capitalismo realmente existente, a democracia foi castrada e foi retirada ao povo a capacidade de escolher entre propostas diferentes. Esta rutura populista de extrema-direita alimenta-se da frustração que as nossas democracias esvaziadas provocam. Mas aquilo que pretendem os milionários convertidos em governantes não é garantir uma maior igualdade e dar maior poder aos povos: o que eles querem garantir é a sua fatia no roubo da nossa vida e das nossas riquezas. A ironia da história é que a eleição dos caudilhos autoritários, como Donald Trump, faz-se pelo voto popular.

Os multimilionários capitalistas ganham o poder afirmando-se os candidatos da classe operária branca e dos espoliados da globalização. Depois de terem criado a sua enormíssima riqueza com essa mesma globalização, os milionários ocidentais pretendem que o nacionalismo, o racismo e a xenofobia os protejam da emergência dos capitalistas dos países em vias de desenvolvimento. O seu poder é nacionalista e xenófobo para dirigir a ira dos explorados, não contra os capitalistas, mas contra os mais fracos, os migrantes da globalização.

O seu poder poderá criar fronteiras, mas é feito para manter todas as desigualdades. A sua manobra é liquidar os restos da democracia para garantir a criação de um permanente Estado de exceção que garante, pelo poder das armas se for necessário, a sua riqueza contra a pobreza de todos os demais. Enquanto nos distraem, garantindo que os imigrantes roubam os nossos empregos, vão continuando a roubar a riqueza das nossas sociedades para os seus bolsos. O populismo de extrema-direita é o governo dos ricos disfarçado com o discurso para agradar ao “povo”.

Donald Trump pode dizer que quer governar para o povo e dizer que quer devolver o orgulho aos operários norte-americanos, mas o seu governo é dos ricos e constituído pelos ricos: a sua administração concentra 14 500 milhões de dólares de riqueza, o equivalente ao que têm os 43 milhões mais pobres dos EUA.

A política não é expressão direta e imediata de uma realidade social. Um pessoa, ao contrário da maçã de Newton enquanto cai devido à lei da gravidade, pensa. Não é por a maioria das pessoas do mundo serem pobres que a política é feita a seu favor. Para isso elas têm de ter não só consciência da sua situação, mas a capacidade de criarem uma ação com sentido que seja compartilhada por essa esmagadora maioria.

Este processo de construir um sujeito histórico, seja uma classe ou um povo, é o processo de construção de uma hegemonia e de um terreno de luta política. Só haverá alternativas aos poderes existentes e aos populismos racistas e inigualitários se essa nova hegemonia for construída. Não basta que os explorados e os oprimidos sejam a maioria. Eles têm de te ter um discurso emancipatório que dê força material às suas posições.

Num mundo como o de hoje, em que os laços das fábricas e dos empregos escasseiam, é preciso ter a capacidade de construir outras comunidades que vêm e lutam. As centenas de milhares que ocuparam as ruas dos EUA contra Trump são um início, mas falta-lhes uma arma fundamental, a ideia de um futuro diferente que serve como fagulha para uma explosão maior.

Nos anos 30, a política tornou-se guerra. Hoje, a guerra pode ser o fim de tudo. Na altura, o fascismo foi combatido a tiro. Como escrevia Georges Canguilhem sobre o matemático francês tornado resistente armado e fuzilado pelos nazis, Jean Cavaillès: “Um filósofo matemático cheio de explosivos, um lúcido temerário, um resoluto sem otimismo. Se não há aqui um herói, o que é um herói?”