O senhor Raul Marques preside à comissão de moradores. É, juntamente com Daniel Miranda, também da comissão de moradores, a pessoa do bairro que nos conduz à cozinha comunitária. As Terras da Costa têm duas áreas principais: junto à estrada, na parte de baixo do bairro, vive a comunidade cigana; no alto da localidade, onde fica o edifício que ganhou um prémio internacional de arquitetura, viva a comunidade de origem africana. “Já cá viveram também uma dezena de brasileiros, mas com a crise voltaram ao Brasil, e nunca participaram muito na comunidade”, nota o presidente.
Enquanto passamos pelas ruas estreitas e nos aproximamos de uma espécie de horta comunitária que quase divide o bairro, vamos conversando. Disseram-me que ele tinha jogado uma vez contra os Magriços. Sorri com os olhos e diz-me: “É verdade. Sabe, eu jogava boxe e meti-me em trabalhos. Foi na cadeia de Lisboa que os Magriços, antes de irem para o campeonato mundial na Inglaterra, fizeram um jogo com os presos.” Chegamos finalmente à construção de madeira. Nada que pareça ser um edifício premiado por um dos mais importantes sites especializados em arquitetura do mundo, mas é verdade, as notícias confirmam-no. Remeto para o texto do i de dia 11 de fevereiro: “O ateliermob de arquitetura, onde trabalha o nosso cronista Tiago Mota Saraiva, ganhou um prémio da prestigiada plataforma Archdaily dos EUA.
Três projetos dos sete portugueses que se encontravam entre os finalistas do Prémio Edifício do Ano 2016, promovido pela plataforma Archdaily, dedicada à arquitetura, são os vencedores nas categorias de hospitalidade, arquitetura pública e remodelação. A Cozinha Comunitária Terras da Costa, na Costa da Caparica, da responsabilidade do ateliermob e do Coletivo Warehouse, venceu a categoria de arquitetura pública.
Nesta sétima edição do prestigiado prémio internacional, atribuído por votação do público desta plataforma especializada em arquitetura, estiveram em análise mais de 3 mil projetos de todo o mundo. Depois de uma primeira votação foram selecionados 70 projetos, em 14 categorias diferentes, contando-se sete projetos portugueses entre os finalistas.
Na votação final, que envolveu mais de 55 mil pessoas de todo o mundo, foram escolhidos os premiados, entre os quai s três portugueses.
No site do ateliermob, vencedor do Prémio Edifício Público de 2016, pode ler-se: ‘A Cozinha Comunitária foi eleita Edifício Público de 2016. Mais do que o reconhecimento do ateliermob, do Coletivo Warehouse, de todas as pessoas que se foram juntando na construção desta cozinha, da comunidade ou do município, cremos que o que foi distinguido foi a capacidade que a arquitetura tem de melhorar a vida das pessoas. Mas este trabalho só ficará concluído quando a cozinha puder ser desmontada e as suas torneiras deixarem de ser necessárias para abastecer aquela população. Este trabalho só será bem-sucedido quando as mais de 300 pessoas que habitam nas Terras da Costa estiverem a viver numa habitação digna, como a Constituição da República prevê, com água, esgotos, luz e tudo a que têm direito.’”
Conversamos, junto à cozinha comunitária, com o arquiteto Tiago Saraiva. A tónica é a mesma: o prémio deve-se sobretudo ao processo de construção do edifício, mais do que à excelência do projeto em concreto. “Os milhares de pessoas que votaram no projeto leram a história e identificaram-se com a forma como a cozinha comunitária foi construída, com a participação das pessoas”, disse. A cozinha era uma velha reivindicação da comunidade: o bairro só tem um local com água, junto à estrada, que servia mais de 300 pessoas.
Os residentes na parte norte tinham de fazer um longo caminho para conseguirem ir buscar água. Sobre a autoria da ideia, a doutrina divide-se. O arquiteto sublinha o papel de uma das primeiras habitantes do bairro, a dona Vitória, que cozinha milho e sempre tinha sonhado com um espaço que pudesse servir a totalidade da população. Raul Marques não a desmente, mas junta mais um nome, Mónica, uma ativista social brasileira que trabalhou no bairro “e tinha aquela forma de falar brasileira que nos convencia”, sorri a lembrar.
A verdade é que, com essa ideia, começaram a contactar pessoas e chegaram ao ateliermob. A partir daí juntou-se a equipa e os meios que permitiram construir a cozinha comunitária. A Gulbenkian arranjou os 30 mil euros necessários para uma obra que vale bem mais do que isso. Entre trabalho voluntário e materiais reciclados, “estão aqui mais de 100 mil euros”, garantem. Parceiro fundamental no projeto foi o Coletivo Warehouse: foram os seus ativistas que construíram a casa. “Era um cenário completamente surpreendente ver aqueles suecos altos a viver aqui e a brincarem com as crianças do bairro”, relembra Daniel.
As próprias madeiras da casa têm uma história particular: são originárias de uma instalação cultural de quando Guimarães foi Capital da Cultura, em 2012. Foram usadas por um projeto colaborativo na Cova do Vapor, uma instalação cultural provisória chamada Casa do Vapor, “e depois vieram para aqui para as Terras da Costa para servir mais uma vez a comunidade”, explica Rúben Teodoro, do Coletivo Warehouse.
O processo de construção foi longo, entre março de 2014 e setembro de 2014. Depois foi inaugurado a 8 de dezembro do mesmo ano. Dado que era um trabalho que implicava uma edificação de madeira, foram sobretudo os ativistas que participaram nele. A população ajudou nas limpezas gerais do bairro e na parte do processo em que dominavam mais o que se fazia. “Aqui havia muita gente com experiência na construção civil, antes da crise”, relembra Raul Marques.
A crise tem várias marcas no bairro, até na casa. A grelha do churrasco desapareceu. “Está para aí guardada ou pode ter sido gente que anda aí a roubar metal”, afirma Raul. O bairro não tem ligação à EDP. A situação está em vias de se resolver – a companhia diz que é devido ao roubo dos cabos elétricos que faziam a ligação. Enquanto eles não são repostos, há um gerador da Câmara Municipal de Almada que faz o serviço. O seu ronronar ouve-se na cozinha comunitária.
É também aqui que a antropóloga Ana Catarino desenvolve atividades com as crianças, tanto culturais como de acompanhamento ao estudo. Foi Ana Catarino que avisou os elementos da comissão de moradores de que a cozinha comunitária estava a concorrer a um prémio internacional. “Para nós foi uma surpresa, esta vitória”, confessa Raul.
O outro elemento da comissão de moradores, Daniel Martins, mostra entusiasmo. “De alguma forma, o prémio ajudou a comunidade a perceber melhor o sentido do que se tinha feito”, sublinha. Ana Catarino funciona neste processo como mediadora, “o que significa que o meu papel é sobretudo ouvir as pessoas e abster-me de ter uma opinião, facilitar que sejam eles a tomar a decisão” – uma metodologia muito importante, numa situação em que os moradores do bairro estão num processo de realojamento.
Grande parte do bairro vai ser destruído e as centenas de moradores vão para outro lado. Como defende o presidente da comissão de moradores, o processo que foi usado para fazer a cozinha comunitária é fundamental para que a próxima mudança seja levada a bom termo. “Eu defendo que as pessoas devem ter o direito a decidir se são realojadas permanentemente noutros sítios ou se depois regressarão para perto daqui, num novo bairro, devido à importância dos laços que existem entre grande parte dos habitantes”, observa.
A exemplo das barracas do bairro, a cozinha comunitária tem fim à vista.
O seu sucesso será, como diz Tiago Saraiva, do ateliermob, que as suas madeiras ajudem outras populações com uma nova construção comunitária.
No final da visita juntamo-nos todos num café perto do bairro. As pessoas vão discutindo a nova realidade que o prémio criou. A possível afluência de turistas de arquitetura de todo o mundo ao bairro das Terras da Costa. Se isso é bom ou mau para os habitantes. Se os torna uma espécie de curiosidade antropológica, como se visitam os bons selvagens, ou se o facto de conhecerem como vivem lhes dá mais visibilidade social e cidadania.
As opiniões dividem-se na mesa. Daniel Martins, que foi rapper na sua juventude, tem uma tirada que resume a questão: “Não queremos ser um jardim zoológico. O bairro não é um museu e um laboratório.” Raul sublinha que, de alguma maneira, a cozinha mudou também a forma de ver as coisas das pessoas do bairro. Nas primeiras atividades que foram feitas, “as pessoas não se chegavam ao pé e não queriam que lhes tirassem fotografias”; hoje veem tudo com mais naturalidade. “Há mais comunicação e liberdade”, garante.
Um bairro de barracas tem tendência a ser guetizado, as pessoas isolam-se ou são estigmatizadas. Para Daniel, isso só é ultrapassado se as pessoas se conhecerem. “Mais do que uma fotografia, é preciso uma proximidade de meio metro e falarem e conversarem. E é encontrarem-se nos espaços exteriores do bairro e dizerem, ‘ali vai a dona Marta ou a dona Marisa’. É isso que cria a relação. E quando essas pessoas forem ao bairro, as portas estão abertas.”